A Verdadeira Educação - Para a Saúde Mental e Moral

A VERDADEIRA EDUCAÇÃO
PARA A SAÚDE MENTAL E MORAL
 Ivan Oliveira Pielke
08/06/2011





RESUMO
Como viver no mundo? Problematizar os modos de viver, linhas pelas quais escrevemos a nossa própria existência, e contribuímos para o ethos da sociedade, é um dos caminhos para levantarmos hipóteses de como se dá a ética dentro de cada indivíduo. Somos dotados de mente, corpo, consciência e, caminhando nesses campos vastos, encontramos a educação. Muitos autores abordaram o tema do ensino como fator quase que exclusivo na causa das formas de viver do futuro adulto. Precisamos nos perguntar e - se pudermos - responder se ensino e educação trata-se de um único objeto de estudo; e se ele é mero objeto-coisa. A loucura se desenvolve por fatores genéticos (genes), pela forma (como - ethos) com que o infante é tratado ("eu ensino?", "eu instruo?" ou "eu educo?")? Talvez o conceito de loucura, a forma com que ela se manifesta, vindo à luz, e como ela é per si, seja mais abrangente que as concepções dualistas de mente ou corpo, instrução ou educação, genes ou ambiente; há o desafio e possibilidade de utilizarmos "e" ao invés de "ou", mas para isso precisamos nos despir de extremismos e admitirmos uma nova forma de pensar uma sociedade que vive a cultura do vazio; ironicamente trata seus "doentes" em situações muito distantes da ética praticada nos gabinetes e nas comissões que se proliferam proporcionalmente a sua hipocrisia. O presente artigo pretende refletir sobre ser psicólogo entre dilemas poucos estudados, tampouco vivenciados, nas academias “psicologizadas” que pouco pensam os dilemas éticos, a política como arte das relações, o papel da educação na constituição do ser humano e o antigo drama de não encontrar um norte seguro que nos diga o que é a saúde mental e como devemos agir diante de seres humanos. Talvez estejamos no vazio, tateando em busca de algo que não nos é ensinado na faculdade: a Alma





PALAVRAS-CHAVE: Ética, educação, moral, saúde moral, saúde mental, sentido da vida, abordagem centrada na pessoa

1 CONCEPÇÕES QUE INFLUENCIAM ESTE TRABALHO
Pouco ocorre nos livros de psicologia vigentes que relação mãe-bebê, figura de autoridade, representações mentais da infância, arranjos familiares e outras denominações fazem parte daquilo que chamamos de educação. Diversas ramificações desaguaram ao longo do desenvolvimento das teorias sobre o pensamento humano. Immanuel Kant contribui com o modelo deontológico que diz respeito ao dever do ser humano perante ele próprio e a sociedade. Se citarmos esse nome em uma aula qualquer de qualquer faculdade psicologia, muito provavelmente teremos alunos espantados e talvez até arredios com tantas concepções de ser humano. A psicologia foi demasiadamente afastada dos conhecimentos que até então eram desenvolvidos. O materialismo de Karl Marx influenciou claramente o pensamento Freudiano, mas também as vertentes comportamentalistas de Wundt e Skinner. Sigmund Freud desenvolveu a teoria psicanalítica sobre a hipótese de que o homem é movido de acordo com a vontade de prazer advinda da relação sensorial e subjetiva na constituição do psiquismo. Surgem os conceitos de id, ego e superego, as estruturas do psiquismo e toda fundamentação em torno da relação da criança e os pais. Esse olhar é insuficiente, como o de todas as ciências, mas por muito tempo foi exageradamente vista como a chave única para desvendar “os mistérios da mente humana”. O que tem ali dentro, por que o ser humano é assim? Por considerar os fatores da sexualidade do infante superestimada por Freud, Alfred Adler decide criar sua própria escola – a psicologia do desenvolvimento individual, a qual baseia seus pressupostos sobre a vontade de poder como a motivação básica do ser humano.
Diante das concepções extremadas de ambas as partes (Freud e Adler), a Tercerira Escola Vienense de Psicoterapia – A Terapia do Sentido da Vida recebendo o nome de Logoterapia. O seu criador, Viktor Emil Frankl (1946, p.91), responde a indagação de um americano sobre a Logoterapia:
“Então, doutor, o senhor é psicanalista?” ao que respondi: “Não bem psicanalista. Digamos um psicoterapeuta”. Continuou ele: “Qual é a escola que o senhor representa?”. Respondi: “É a minha própria teoria. Chama-se logoterapia”. “Poderia o senhor dizer-me, numa única sentença, o que quer dizer logoterapia, ao menos qual é a diferença entre psicanálise e logoterapia?”. “Sim”, repliquei, “mas, em primeiro lugar, pode o senhor dizer-me com uma só sentença o que pensa ser a essência da psicanálise?”. Eis sua resposta: “Durante a psicanálise, o paciente precisa deitar-se num sofá e contar alguma coisas que, às vezes, são muito desagradáveis de se contar”. Ao que retruquei imediatamente com o seguinte improviso: “Bem, na logoterapia o paciente pode ficar sentado normalmente, mas precisa ouvir certas coisas que, às vezes, são muito desagradáveis de se ouvir”.

A chave interpretativa do ser humano, segundo Frankl, é a vontade de sentido; a vontade de encontrar um motivo para a sua existência, o que justifique a sua vida e o faça desafiar o dilema de Sísifo. “Se a vida tem sentido, que sentido é esse?”, é a pergunta-chave que fazemos mais cedo ou mais tarde.
O ser humano é livre? Até onde é livre? Podemos chamá-lo de homem, animal ou mero joguete da sociedade? Frankl respondeu a essas indagações, mas Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), duzentos anos antes, contribuiu: “O homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado. Aquele que se crê senhor dos outros  não deixa de ser mais escravo que eles” (1762, p.9).
Sem encerrar qualquer idéia de liberdade, indo até o conceito de saúde mental, pergunto se sociedade e a cultura talvez possam contribuir para o “enlouquecimento” dos seus entes. Chamávamos os loucos de alienados, termo também utilizado por Marx com uma conotação diferente, mas se pensarmos e, com algum esforço, trouxermos para o tema educação, Rousseau acrescenta que a educação cria os maiores vícios e fantasias que dificilmente deixam a alma da criança. A educação ainda hoje é baseada na fantasia: fantasio que ensino, acredito na fábula de que o que ensino é importante para aquela criança; ela tem fé na minha fantasia, leva a fábula como real e toma como importante os significados que lhe dão prontos e esterilizados. O professor inspira pouco além da memória e, mesmo assim, o chamam de educador. Eu o chamo de treinador.
A aprendizagem significativa é centrada na pessoa, ou seja, no educando. Carl Rogers diz que a aprendizagem significativa é a que instiga o ser humano a desenvolver sua personalidade – e, por conseqüência seus pensamentos e atitudes – como um todo. Que os afetos estejam ligados a curiosidade de conhecer além do que é visto na sala de aula; é instigar a pesquisa a partir do próprio aluno, utilizar-se dos meios que lhe convém e o local onde possa encontrar o conhecimento. Essa abordagem se aproxima dos métodos de Rousseau por ter suas bases na liberdade e crença de que o ser humano tem o potencial construtivo, que esse potencial pode se desenvolver mais ou menos, dependendo do ambiente e da relação entre educador e aluno. O papel do educador, segundo esses pensadores, é o de prover e apontar os meios para a criança se desenvolver, e de evitar que haja atravessamentos que prejudiquem ou bloqueiem a excursão até a aprendizagem. A educação não consiste em dar/entregar os fins: conhecimento, aptidões, técnicas, leis morais, regras, capacidades intelectuais; antes, o papel do educador é de entregar a responsabilidade pelo desenvolver de suas próprias faculdades, sejam elas intelectuais, morais, técnicas, de conhecimentos. A política e proposta do que chamamos essencialmente de educação está basicamente fundamentada na liberdade, na dependência das coisas (não das leis impostas, muitas vezes contendo apenas preconceitos e carregadas de poder pelo poder), responsabilidade por si e a construção dos (seus) meios para atingir os fins.
As vivências entre os educandos, como também a relação destes com o professor-facilitador, tende a ser profunda, pois a premissa desse “método” é o interesse empático e confiança forte que o professor tem nas capacidade do indivíduo e da criança; ela não é somente um aluno, mas uma pessoa digna de respeito e confiança; não um ser que deve ser moldado à imagem e semelhança a partir das mãos do adulto; devendo seguir disciplinadamente os costumes dos adultos. No ensino baseado na coerção a criança deve ser um adulto em miniatura, como critica Rousseau. Rogers explica que o como educar é baseado em valores (implicitamente morais), que se refletem nas formas (ethos educacional) de educar; onde o facilitador da aprendizagem está aberto a mudanças, a modificar suas estruturas cognitivas, emocionais e, por conseguinte, aproximar a sua maneira de agir com as demandas emocionais, intelectuais e afetivas, acreditando no potencial dos educandos em encontrar suas próprias alternativas para darem conta da realidade ou, de maneira mais direta, viver a sua própria vida. Segundo o psicólogo americano, essa proposta de relacionamento pode desenvolver a confiança que as pessoas tem em si mesmas e nos outros, instigando a responsabilidade de serem agentes que assumem seus pensamentos, tornando-se mais aptos a mediarem seus atos com o seu ponto de referência interno. A proposta é de que o professor não seja o dono/detentor do conhecimento, do único conhecimento, do modo de disponibilizar o saber, mas que facilite a aprendizagem dos lumnos (antes chamados de alumnos; prefixo a indicando a ausência e lumnos do grego luz). Que os pais sejam os primeiros professores; sejam pais, companheiros e não exemplos de como ser um tirano; que confiem no potencial do ser humano ser capaz de atingir os seus objetivos por ele próprio. Confiar que a criança é digna de respeito, que é capaz de viver sua liberdade aliada ao senso de responsabilidade, é talvez a maior prova de respeito entre os seres humanos. “Os educadores precisam compreender que ajudar as pessoas a se tornarem pessoas é muito mais importante do que ajudá-las a tornarem-se matemáticas, poliglotas ou coisa que o valha." (ROGERS, 1969, p.54).

Há uma valorização do indivíduo, da sua existência e do processo de tornarem-se eles mesmos e se responsabilizarem por isso (congruência). “É de fato paradoxal verificar que, na medida em que cada um de nós aceita ser ele mesmo, descobre não apenas que muda, mas que as pessoas com quem ele tem relações mudam igualmente” (1977, p.33) exclama Carl Rogers ao explicar que a atmosfera, não somente em uma sala de aula mas em qualquer ambiente grupal, tende a se tornar mais satisfatória quando todos aceitam o outro como ele é, onde há abertura para críticas empáticas e compreensão por parte do facilitador/professor.
Como está sendo visto até aqui, a liberdade e seus conceitos, permeiam a construção do indivíduo, os processos e o tornar-se alguém.
A liberdade e a “substância ética” são focos de estudo do filósofo Michel Foucault. Os modos que os sujeitos se relacionam consigo mesmos e com o mundo, entre as relações de poder, que segundo Foucault, são inerentes em todos os contextos da vida, faz o autor levantar a questão sobre a vida como uma obra de arte singular. (Não divido da idéia de que em todos as relações, sem exceção, exista vontade ou ações baseadas em poder). A ampliação do grau de liberdade, as reflexões que decorrem da possibilidade de ser um sujeito pensante independente do objeto ou do detentor do saber, e a elaboração de estratégias para haver uma maior fluidez e alternância nos jogos de poder e verdade são de suma importância na teoria ética e psicológica do autor francês. Aplicamos à saúde mental as questões do ethos do cuidado onde o saber psicológico produz fenômenos como da inflexão das normas e atualizações sutis (quase hipócritas) nos tratos diários com pacientes e usuários dos serviços de saúde. Muitas vezes o que chamam de cuidado, possibilidades de novas formas, repertórios cognitivos e estruturais não passam de procedimentos de dominação.
Rousseau, Kant, Thomas Hobbes, e tantos outros pensadores, salientam que a vida em sociedade só é possível de existir devido à criação de leis que pretendem proteger a sociedade dela mesma. Importante apontar que Hume levantou essa idéia, mas acrescentou que os sistemas de regras e leis morais só são passíveis de serem respeitadas e obedecidas devido a uma natureza humana chamada de “simpatia”; melhor chamada de empatia. Essa característica de natureza humana pensada por Hume é uma das três atitudes que Carl Rogers argumenta como sendo necessárias, além de suficientes, para a facilitação do crescimento do outro. Além da Empatia, capacidade de se colocar no lugar do outro (no modelo de como se eu fosse o outro, sentindo em si, ou por algum esforço num grau relativo o que o outro sente e pensa); Aceitação Positiva Incondicional, que é a capacidade de se posicionar e agir com respeito e aceitação do outro na sua integralidade, independente de quem ele é, como age, pensa e quais são as suas vontades; e Congruência, que é a aptidão e/ou capacidade do facilitador ser ele mesmo (coerente), conseguir ouvir o seu organismo, estar integralmente conectado tanto corporalmente quanto psiquicamente e por ventura, dependendo da sua avaliação, expressar ao outro o que está sendo vivenciado dentro do seu mundo.
Pretendo e acredito ser capaz de engendrar temas da educação, ética, arte de viver politicamente com a crítica e possibilidade de prevenir a doença mental dos particulares que por sua vez, um a um, em seus grupos, famílias, comunidades, e demais, constituem a loucura particular reverberando no âmbito maior, fazendo surgir o que chamam de patologias sociais. Nenhuma disciplina está dissociada da outra. Na educação há moral, política, saúde ou doença; na política há moral, direito, saúde, doença; na saúde há política, educação, direito e moral. Penso que a possibilidade de mudança obrigatoriamente está na educação familiar; que tem uma “maneira moral” de ser. Segundo nossas leis de Estado, a escola é caminho obrigatório para todos os cidadãos particulares. É na escola que penso o lugar apropriado, talvez único, de podermos fazer a revolução não-armada, silenciosa, de dentro para fora; baseada no poder de dar poder, auxiliar as pessoas a se apropriarem de suas leis morais, instigando os seus próprios pensamentos éticos, construindo capacidades críticas e atitudinais para que eles próprios revolucionem inclusive a própria educação, a educação no Estado. O próximo passo, se estes primordiais forem consolidados, é o de modificar e moralizar a estrutura da sociedade. Que sejam capazes de modificar por se apropriarem e se responsabilizarem pela sua parcela de participação na vida pública. Espero que de alguma forma este trabalho contribua para que saiamos – em um futuro - do niilismo, do vazio e loucura moral que estamos vivendo na sociedade atual.

2 A EDUCAÇÃO – SAÚDE E DOENÇA: MENTAL E MORAL

O sistema de saúde mental no Brasil dispõe de dispositivos como os Centros de Atendimento Psicossocial, ambulatórios de atendimento multidisciplinar, residenciais terapêuticos e outros instrumentos que foram criados após a tão falada reforma psiquiátrica. Após anos de lutas ferrenhas, as pessoas “alienadas”, internadas nos hospitais psiquiátricos, institucionalizadas, permeadas pelas doenças das instituições, passaram a respirar o ar da cidade. Mudaram os ares, mudaram os vapores, mas continua a doença institucional; numa sociedade louca à mercê de políticas de Estado, com seus milhares de interesses e loucuras. Políticas desenvolvidas por “representantes” mergulhados em instituições famintas por poder e dinheiro dos seus escravos; impostos que os loucos pagam em cada alimento, roupa, combustível, livros e futilidades, além de outras necessidades desnecessárias que nossa sociedade está sempre aberta e disposta a tomar como necessárias. No Brasil, crescimento não é sinônimo de acesso a bens básicos e de qualidade como a educação, saúde, segurança; crescer e se desenvolver, num país louco, é poder; pode consumir, poder comprar, poder engolir, poder ter, não poder Ser - poder se desenvolver como indivíduo, cidadão, homem dotado de senso ético. Temos um governo enlouquecedor, criador de instituições doentes, eleito por um povo louco.
Como é a vida após o manicômio psiquiátrico? Basearam-se em quais pressupostos para defender que a vida fora do manicômio seria mais positiva ou construtiva socialmente? Como viver nessa sociedade após tantos anos respirando o mesmo ar, num mesmo local? Refuto a idéia e o jargão de “excluídos da sociedade”; nunca deixaram a sociedade, não foram deportados a ilhas, enviados a outros territórios ou países, sempre estiveram em ambientes criados pela própria sociedade, portanto, dentro da sociedade. É importante diferenciar aqui que estar inserido em uma sociedade, seja dentro de um manicômio ou em sua casa  é sinônimo de usufruir dos serviços que hipocritamente a Constituição Federal, nos programas, instituição e Ministérios se propõem a oferecer. Tanto o louco quanto o saudável tem grandes dificuldades, em diversas instâncias dos sistemas e serviços, para usufruir os seus direitos básicos de ser humano como: alimentação, infra-estrutura, segurança, educação e saúde – atento nesse momento a este último serviço. As condições nos manicômios indiscutivelmente eram deploráveis e abaixo do adjetivo “subumano”. A visão moral que os agentes políticos do Estado, os profissionais da “saúde” e a própria população para com o louco era do perigo, desvalia, repúdio, rechaço e medo. Pensemos se isso não existe mais. O leitor acompanhando o raciocínio até a linha acima muito possivelmente pode se enganar pela falácia do sucesso revolucionário das “políticas de valorização e humanização do usuário do Sistema Único de Saúde”; muita indução e criação de falácias através da publicidade para pouca mudança genuína na ética em saúde mental.
A psicologização generalizada e a altivez “mentalista” instiga a vaidade do status doutor médico. O que importa nesse ethos relacional é o saber técnico, mecanicista. Poder-saber, poder ter controle sobre o que é “o melhor para o paciente”, nas decisões da equipe ou sozinho em um diálogo 1x1. Demasiado controle externo (técnico) para pouco desenvolvimento de responsabilidade interna pelo próprio processo (usuário/paciente).
Fazer suas próprias leis, assumir essas leis como sendo válidas e utilizáveis, fazem do indivíduo um ser livre, segundo Immanuel Kant. Foucault, grande influenciado do filósofo alemão, defende que o ser humano só pode ser um ser ético, desenvolvendo e pensando a sua moral num ambiente onde exista essa liberdade; uma instância retroalimenta a outra. Um dos maiores dilemas em saúde mental é o limiar tênue entre cuidado e poder. Como citei acima, não acredito que sempre exista poder, mas que podemos, sim, reproduzir o modelo baseado no poder. Não tomo o efeito de um ethos como a causa da postura diante do usuário do SUS ou de qualquer outro modelo que nos propomos para ajudar alguém. Precisamos pensar se o profissional pode quebrar esse ciclo [ ter poder > controlar até onde o usuário deve ir (hipocritamente chamando de cuidado) > habilidades que o profissional acredita ser “saudável” > através dos seus próprios julgamentos, controlar o que não é “saudável” ]. Ilhas demograficamente lotadas de técnicas, saberes, lógicas, instrumentos, diagnósticos e objetos para serem estudados; pouquíssimo arquipélagos.
Na vida diária, o trabalho em saúde mental desenvolvido em residenciais terapêuticos remete ao fazer educativo. De questões simples de causa e efeito a ter confiança suficiente para tomar um ônibus. Muitos usuários tem dificuldade em fazer a conexão entre cuidado pessoal, asseio, limpeza do seu espaço físico e o seu desejo em voltar para casa ou procurar um novo espaço. A autonomia requer responsabilidade, mas só é desenvolvida em uma educação baseada na liberdade e método que muitas vezes se baseia na simplicidade da causa e efeito. Rousseau levanta essa questão em “Emílio ou Da Educação”: “Ele quebra as janelas de seu quarto; deixai que o vento sopre sobre ele noite e dia sem vos preocupardes com o resfriado, pois é melhor que ele esteja resfriado do que louco. Nunca vos queixeis dos incômodos que ele vos causa, mas fazei com que seja o primeiro a senti-los. Por fim, mandai repor os vidros, sempre sem dizer nada. Quebra-os mais uma vez? Mudai, então, de método. Dizei-lhe secamente, mas sem cólera: as janelas são minhas, foram postas ali por ordem minha, e eu quero protegê-las. Depois vós o trancareis no escuro, num lugar sem janelas. Diante desse novo procedimento, ele começa a gritar, por trovejar; ninguém o escuta. Logo ele se cansa e muda de tom. Queixa-se e geme; um doméstico aparece, o rebelde pede-lhe que o solte. Sem procurar pretexto para nada fazer, o doméstico responde: Tenho também vidros a conservar, e vai embora. Finalmente, depois que a criança tiver ficado ali por várias horas, tempo bastante para se aborrecer e para não esquecer, alguém lhe sugerirá que vos proponha um acordo por meio do qual vós lhe restituiríeis a liberdade e ele não quebraria mais vidros. Ela aceitará. Pedirá que ides vê-la, e vós ireis; far-vos-á sua proposta e vós a aceitareis imediatamente, dizendo-lhe: muito bem pensado; nós dois lucraremos com isso; por que não tiveste essa idéia antes?” (1757, p.142).
Que as penas sobre suas escolhas caiam sobre a sua própria cabeça. Que no início da vida as causas provenientes de ações da criança sejam evidentes, saibam os seus efeitos, que muitas vezes cairão sobre si ou prejudicarão também outros. Do mesmo modo está a negligência para com a própria vida. Que faço eu, louco, destituído do “saber viver”, necessitado de cuidados que, segundo me mostram, são eternos? O profissional da saúde repetidas vezes reproduz o mesmo método de educação que um dia enlouqueceu aquele que agora está sob seu cuidado. A proposta é de que seja instigada (não imposta) no indivíduo a responsabilidade tanto sobre o que fazer, quanto como e por que (qual fim) estou fazendo. Não há maneira de impor verdadeira responsabilidade ao outro; ele precisa se apropriar dela, não agindo para mim, mas para ela e por ela. Infelizmente não aprendemos na academia atitudes como essas que não requerem imensas aulas, anos de leitura, treinamentos árduos em didáticas e métodos - por justamente não ser um método -, mas antes, uma postura baseada em no valor moral de não querer ter poder, de respeitar, de confiar ao indivíduo a responsabilidade sobre suas ações e suas conseqüências, sejam elas boas, más, construtivas ou destrutivas; afinal, ninguém vive a vida do outro, mas o ser humano tenta isso de inúmeras formas. Parece lógico e óbvio que não tentar impor maneiras de viver que não sejam a partir do outro.
Devemos suprir as expectativas deturpadas do meio social. Deveres externos que nem sempre estão de acordo com os desejos singulares e morais do indivíduo. Levamos para a adultez aquilo que vivenciamos na infância. Devo ser inteligente não passa de reprodução de conhecimentos e memorização de curto prazo; “bem sucedido” (financeiramente, status, profissão), bom filho (obedecer, aceitar passivamente a autoridade) e bom aluno (tirar notas boas, obedecer a regras). Na inteligência requerida pelo meio não é valorizada a criação de novas formas de pensar, maneiras diferentes de resolver um problema que atualmente se resolve de determinada forma, não é inteligente aquele que procura informações e dados que talvez estejam fora da alçada técnica do professor. Ser bem sucedido é ter quantidades de dinheiro, ter um status social ligado a uma profissão que seja de alguma forma valorizada através da vaidade e da opinião. Bom filho é o que reproduz a maneira de pensar e agir que os pais acham mais adequados de acordo com os parâmetros deles; não um ser capaz de discernir entre o verdadeiro e falso, correto e incorreto, através de respostas dadas a partir do infante, mas das que os pais lhes fornecem. Tirar notas “boas” através de avaliações feitas somente através do professor, sem a participação do “alumno”, sobre infinitos casos de aprendizados que nada terão de proveito e utilidade no presente tampouco no futuro.
A educação natural que Rousseau propõe aproxima a natureza dos fenômenos a vida real, deixa viva a curiosidade que é inata, ao invés de matá-la. Para isso é preciso não satisfazê-la, mas preparar os meios para que ela sacie a sua curiosidade através da sua busca ativa, influente e viva. Necessário que sejam postas questões ao seu alcance, sempre de acordo com o seu alcance intelectual, nunca querendo que a criança seja, segundo o autor, um adulto pequeno. Que ele resolva a questão, seja ela qual for, por ele mesmo. É preferível que ele faça as perguntas a ele mesmo do que ao mestre, pois assim ele se torna o próprio mestre. É preciso que ele não aprenda a ciência, mas a invente porque “se alguma vez substituirdes em seu espírito a razão pela autoridade, ele já não raciocinará e não será mais do que o joguete da opinião dos outros” (Rousseau, 1575, p216). Se nossos pacientes tivessem a educação como a que estou mostrando, talvez eles não fossem nossos pacientes, mas muito possivelmente nossos terapeutas.
Para que a criança - que será adulto - não caia em armadilhas feitas pela sociedade, pela opinião de visionários, charlatões, patifes ou loucos, é preciso que não façamos discursos, ensinemos, catequizemos e sejamos a verdade. Antes!, é preciso que ele não faça porque é exigido por alguém, porque essa pessoa tem uma opinião, porque a opinião é senhora dos vícios e os hábitos a sua semente. Quanto a isso Rousseau discorre (1757, p. 205):
A atração do hábito provém da preguiça natural do homem, e essa preguiça aumenta ao nos entregarmos a ela; fazemos mais facilmente o que já fizemos; estando aberto o caminho, ele se torna mais fácil de trilhar. Assim podemos observar que o império do hábito é muito grande sobre os velhos e as pessoas indolentes, muito pequeno sobre a juventude e sobre as pessoas ativas. Esse regime só é bom para almas débeis, e debilita-as cada vez mais. O único hábito útil aos homens é sujeitar-se sem problemas à razão. Qualquer outro hábito é um vício
Hoje confundimos hábitos de cuidado da saúde do corpo com hábitos rígidos do nosso psiquismo. Quando somos forçados pelas necessidades é que vemos o nosso vício no hábito, no mesmo, no igual ao que sempre foi. É essa rigidez, a inflexibilidade, incapacidade de adaptação ativa junto da remodelação interna de conceitos e atitudes, mudança de crenças e valores morais que fazem o que os manuais chamam de doença mental. Esse fator é típico de mamíferos, mas como Fiodor Dostoiévski proferiu: “O ser humano é o ser que a tudo se adapta”. Se o fator de circulo restrito de vivências no campo biológico e psicológico é uma tendência, a vontade de se desenvolver e evoluir também o é; aí que entram os fatores do meio. Em um meio (família, escola, comunidade) onde os valores como respeito, valorização das capacidades humanas e singulares da criança ou quando o ser não passa de coisa, ocorre a fragilização dessa capacidade e desejo inato de se desenvolver, de tornar-se aquilo que deseja ser - quando esse desejo se fragiliza a ponto de querer ser outra pessoa, acabando por desistir de decidir quem ser, como agir, aonde ir, podemos chamar de louco, psicótico, neurótico ou simplesmente de brasileiro.
As maiores mortes do poder de decisão nos educandos não ocorrem por imperícia dos pais-educadores, dos professores-educador, mas por negligência, incapacidade de serem empáticos com aquilo que é essencialmente humano – a necessidade de cuidado livre, aquele que instiga a responsabilidade, não a que atribui fardos, mas que apenas mostra ou deixa que o próprio indivíduo em formação perceba que ele é quase sempre a causa, que essa causa sempre terá um efeito e que ele é agente ativo das causas, das suas motivações e, portanto, responsável por quem se é, por quem gostaria de ser e como gostaria de agir.
Vemos diariamente esses dilemas na prática da atenção em saúde mental. Estaríamos nós psicólogos atuando ao lado de uma equipe multidisciplinar com assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, técnicos de enfermagem, médicos, psiquiatras, se esse ser humano fosse responsável, conseguisse usufruir da sua liberdade, estivesse com as rédeas nas suas mãos? Será que somos capazes de promover um ambiente facilitador? O que constato é que no presente tentamos remediar o passado. Esse passado que não existe mais, mas que está vivo dentro de cada usuário do sistema; passado que deixou marcas fortes, que hoje se expressam através da fragilidade e no estado impotente que essas pessoas estão diante da vida. O que fazemos, segundo o que constato nas nossas práticas, é o de promover a educação que faltou na infância, na adolescência, nesse passado. Estamos criando uma segunda educação porque a primeira não promoveu as condições internas no indivíduo. Agora ele é escravo dele mesmo porque um dia foi escravo de alguém - ou do descaso. Vejo que no olhar taciturno, no peso nas costas, na rigidez dos rituais e nos delírios oníricos o desprendimento da responsabilidade. A vida da pessoa que propomos ajudar parece-me ser alheia a pessoa, a escolha, a decisão. Vejo a insegurança, o medo, a estima baixa por ser “eu ser assim”. Tudo aponta para incapacidade. Não é a incapacidade intelectual; é a ética. Viemos, os loucos ou nós escrevedores de artigos, de um lugar onde a forma com que nos trataram desconsiderou o nosso potencial para o desenvolvimento criativo, para o crescimento e para o surgimento de novos saberes. Isso é inerente ao ser humano, porém querem que apenas reproduzamos, que sejamos como os pais, professores e como a sociedade é; não somos quem naturalmente seríamos, caso não cobrassem que fôssemos “assim”, “quadradros”.
Os loucos habitaram leprosários, hospitais gerais, cadeias, também foram objetos de estudo em consultórios aveludados de Viena e Paris. Mas foi nos manicômios que os loucos ficaram famosos negativamente pela sua institucionalização física (do corpo) e subjetiva (da alienação). O que chamamos de institucionalização é a interiorização de uma forma de pensar, se comportar e lidar com a vida; formas essas que não são nossas, mas de um conjunto de seres humanos que, por sua vez, atribuíram à instituição os seus valores morais e técnicos, gerando políticas. Política pressupõe ética; ética é o estudo sobre o comportamento baseado na moral. O grande problema está na automatização e em não refletir os valores da instituição e, por conseguinte, impossibilitar novas formas de agir e pensar a ajuda; que nesse modelo não é ajuda – somente a reprodução da rigidez, inflexibilidade e incapacidade de adaptação. Ou seja: as mesmas incapacidades individuais se expressando também na instituição (composta por seres humanos).
Há mais de 40 anos começaram os movimentos libertários com artistas e bandas como os Beatles, Bob Dylan, Janis Joplin, todo movimento hippie juntos das feministas, dos homossexuais e nos primórdios dos séculos XX com os beatnicks começou a fervilhar pensamentos que levantaram possibilidades. Os ambientes, que um dia foram restritos, ampliaram-se para além das paredes, muros e cercas do poder institucional, baseados em novos valores humanos que alguns profissionais da saúde se proporam a aplicar. O que sofre psiquicamente passa a ter direitos de usufruir dos serviços do Estado. As ruas, calçadas e meios de transporte são meios de locomoção; a vontade de expandir as possibilidades de desenvolvimento, mesmo que acanhada, é o motor do automóvel. Aos profissionais é delegada a função de auxiliar em aprendizagens como cozinhar, larvar sua roupa, tomar banho, tomar um ônibus; apontar os serviços que a rede de saúde disponibiliza; ajudar no auto-cuidado e também ajudar em atividades práticas e reflexivas para melhorar o senso de segurança, auto-estima e empoderamento de si.
Ampliando o conceito de institucionalização, levando para o campo escolar, nos damos conta que nossas crianças passam até 14 anos nessas instituições – muitas delas estudam em uma única instituição por todos esses anos. A legislação determina que sejam ensinados disciplinas, conteúdos e questões que acreditam ser pertinentes ao pré-cidadão/pré-adulto. São diretrizes políticas advindas de uma moral que influencia diretamente a prática dentro da sala de aula, no pátio, na biblioteca, na comunidade e na sociedade. São disciplinas que julgam serem necessárias e úteis as crianças; mas que não ouvem da boca das crianças se elas estão interessadas em aprender aritmética, ribossomos ou fórmulas da física; discutir diretamente com as crianças diferentes meios que elas acham mais apropriados para a própria aprendizagem, como elas podem aprender, materiais que podem usar; a relação que podem ter com o conhecimento, atualmente, é uma quimera. Mais distante está a real educação integral. O que tratam como “integral” não leva em consideração os sentimentos, ambições, as relações possíveis que os alunos podem ter com seus colegas e professores, não há busca verdadeira por ter uma relação entre iguais onde o professor aprende com o aluno. A educação é baseada na vaidade; Rousseau enfatizou no seu romance filosófico Emílio: “O grande inconveniente dessa educação é que ela só é perceptível aos homens clarividentes e, numa criança educada com tanto cuidado, olhos vulgares enxergam apenas um moleque. Um preceptor [professor] pensa muito mais em seus interesses do que nos de seu aluno; tenta provar que não está perdendo tempo e ganha bem o dinheiro que lhe dão; oferece-lhe um saber de fácil exibição, que possa mostrar quando quiser; não importa que o que lhe ensina seja útil, contanto que seja de facilmente visível. Amontoa, sem escolha, sem distinção, cem coisas em sua memória. Quando se trata de uma criança, fazem-no desembrulhar sua mercadoria; ele a exibe, todos ficam contentes; em seguida, ele embrulha de novo o pacote e vai embora. Meu aluno não é tão rico assim, não tem pacote para desembrulhar, nada tem para mostrar, a não ser ele mesmo. Ora, uma criança, assim como um homem, não se vê num instante. Onde estão os observadores que sabem distinguir ao primeiro olhar os traços que a caracterizam? Tais pessoas existem, mas são poucas; e, dentre cem mil pais, não encontrará nenhuma delas” (1757, p.209).
Foram expostos os vícios da educação e as virtudes de um modo diferente pensado até então; o que faz a virtude é o dever interno, constituindo a “ética do dever”. Diferentemente da heteronomia, quando o indivíduo age de acordo com leis externas, alheias a ele. Immanuel Kant (1724 – 1804) defende que só há liberdade quando o indivíduo atinge a sua autonomia que, ao contrário da heteronomia, constitui a capacidade do indivíduo auto-legislar sua vida, seus atos e seu pensamento (à priori). Kant baseia toda a sua ética deontológica através das leis morais originadas no uso da razão pura; à parte das paixões, preconceitos, sentimentos, opinião, senso comum e etc. Essas leis devem ser objetivas e universais; só há lei verdadeira e justa quando sou livre para pensar e para legislar. O método proposto por Immanuel Kant, cunhado como Imperativo Categórico e sinteticamente dividido em três desdobramentos, é o seguinte:
1)       – O próprio Imperativo Categórico: "Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza";
2)       – Imperativo Universal: "A máxima do meu agir deve ser por mim entendida como uma lei universal, para que todos a sigam";
3)       – Imperativo Prático: "Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio".
A partir do exercício da razão pura, que é sempre anterior a qualquer ação e independente da experiência empírica, é o único modo de criar leis internas que se baseiem na possibilidade metafísica no modelo “como se” os outros devessem agir nas suas vidas. Se meu pensamento é válido, se creio ser viável, infiro que ele é justo, universalizo e aproximo-o “como se devesse” se tornar uma lei da natureza, das ações humanas e das relações entre si, assim devo proceder em minhas atitudes. Kant tenta aplicar as leis da física e da matemática (empíricas) agora naquilo que é essencialmente metafísico; nas leis morais, na idéia de liberdade, e assim por diante. Como aplicar elementos metafísicos - que muitas vezes podem parecer pedantes ou até insanos - à educação?
No pátio da escola, durante o recreio, um grupo de crianças está reunido em volta de uma árvore. Vejo que um dos meninos está puxando um galho que abriga um ninho de passarinho. Ao me aproximar, vejo em seu rosto uma mistura de curiosidade, exibicionismo e maldade. Um psicólogo está supostamente preparado para interpretar processos mentais, não leis morais, mas se esse psicólogo - que antes de ser profissional, é humano - pode ele emitir juízos éticos? Creio que não, mas pode instigar a pessoa, que ela própria chegue ao seu julgamento sobre suas próprias atitudes.
Há um resto de casca de ovo no chão e um feto de passarinho rodopiando na mão de um coleguinha. As meninas sentem nojo, pedem para que ele pare; ele continua, insistentemente a balançar e puxar o galho, com a finalidade de alcançar o ninho. A mãe passarinho está logo acima, pulando de um galho para outro; se fosse uma leoa, certamente eles não estariam ali. Não digo nada nos primeiros instantes, deixo que todos vejam a minha presença, estou calmo e minhas feições são neutras. Acorre-me o desejo de indagar, ao invés de exclamar. Improviso assim, junto do pequeno déspota: “Se tu pudesses fazer o mesmo com todos os ninhos do mundo, caso fosse possível, tu farias?”; completando: “E se fosse possível que além de todos teus colegas, inclusive eu, devesse através da tua ordem fazer o mesmo, tu acharias válido ou justo que assim fosse?”. Ele continua a puxar, no entanto começa a aplicar menos força em suas tentativas; logo ele para, pergunta meu nome e abandona a empreitada e segue em busca de uma bola de futebol.
Não creio que tenha sido eu o agente da escolha sobre derrubar o ninho diante das opções, dentre elas a de derrubar o ninho ou não - se é que ele assim queria -, mas talvez tenha ajudado, em qualquer nível que seja, o pensamento através de si, utilizando o método kantiano descrito acima. Talvez a metafísica possa ser aplicada à experiência empírica como a da educação através das coisas [causa > efeito] = [força > derrubar o ninho], ou, [velocidade do meu punho > deformação do rosto do colega]. Em ambos os casos temos a moral que antecede o ato. Negar esse atributo essencialmente humano é negligenciar talvez uma grande faceta da sua existência, aproximando-o do humano em estado de natureza (selvagem). Como há muito deixamos o estado de natureza e vivemos em um estado civil, negligenciar a capacidade humana de agir moralmente, emitir juízos sobre as suas atitudes e pensamentos, tentando implantar os nossos juízos sobre os da criança, não transformamos ele em animal, mas em joguete e em coisa.
A educação boa que falta na infância, não gera efeitos somente na idade adulta. Deixar a experiência sensória da primeira infância para então desenvolver as faculdades mentais requer energia e trabalho duro por parte da criança e principalmente do educador. Quando somos pequenos, a energia é abundante, temos o instinto da curiosidade a nosso favor; inverte-se quando somos adultos: corpo maior, energia menor (comparada a infância). Temos de aproveitar a maleabilidade do espírito infantil e a energia abundante. A idade mais intensa e propícia ao desenvolvimento sensorial, mental e motor deve ser usada a favor da criança.
Na imensa maioria dos casos, os pacientes e usuários do sistema de saúde mental tiveram um déficit em qualidade de educação justamente na idade mais propícia ao desenvolvimento. Que fazemos no presente? Infelizmente ainda não conseguimos voltar ao passado, tarefa que forçosamente muitos psicologistas tentam fazer através da memória do paciente dentro do seu consultório particular ou vasculhando o prontuário nos serviços de saúde mental. Nossos pacientes trazem em sua memória muitas dores do passado, mas continuam sofrendo no presente. O afeto que faltou na vida infantil tentamos, na medida do possível, “dar” na relação profissional. O cuidado zeloso que faltou na família, tentamos oferecer enquanto servidor do serviço de saúde.
Como todo extremo gera conseqüências negativas, há geralmente dois pólos. De um lado a negligência, de outro o poder. Importante não confundir cuidado com poder e negligência com liberdade. Sutilmente, e muitas vezes grotescamente, os educadores ou profissionais da saúde mascaram suas práticas tirânicas com “para o teu bem”, “faço isso porque te cuido”, dentre outras mentiras. O agente de saúde passa a ser uma espécie de segundo educador; aquele ausente ou excessivamente “presente” da infância. Nessa profissão de ajuda ele auxilia o usuário a manter sua higiene, cuidar do recinto onde mora, elaborar repertórios de como se locomover na cidade, lavar sua roupa, comprar e preparar a própria comida, projetar a sua próxima morada (já que os serviços atuais não são mais de moradas fixas e eternas, como no modelo manicomial), seus planos futuros e etc. Descrevendo dessa maneira, em um artigo, pode parecer paradisíaca a política de saúde mental. De perto ela é diferente. “Tu deves tomar banho”, “tu deves arrumar teu quarto”, “tu deves ir a tal lugar”, “tu deves lavar tua roupa”, “tu deves comprar tua comida e prepará-la”, “tu deves ir a outro lugar”, “tu deves... no fundo, fazer aquilo que eu quero que faças, porque não me preocupo se para ti isto ou aquilo é válido”. Esse é o modelo oposto à política instituída por todos os atuais serviços de saúde mental: autonomia. O senso moral do dever que me impõem qualifica a heteronomia. Não sou agente de mim, não me ajudam saber o motivo pelo qual devo fazer isso ou devo deixar de fazer aquilo. E se fosse diferente, como no modelo centrado na pessoa (Rogers) ou no método simples de causa e efeito das coisas (Rousseau)?
As perguntas podem falar mais do que exclamações. “Se tu não tomares banho, poderá acontecer o que?”. Caso não tenhamos uma resposta, talvez possamos ajudá-lo: “Talvez passe a cheirar mal e/ou ficar com uma aparência suja (causa). Que tu achas disso?”. Muito possivelmente ele(a) dirá que não é “bom” ou “agradável” para si estar “fedendo”. Caso ele esteja indiferente quanto ao seu odor, vale lembrar que existem pessoas além dele, e inclusive o próprio profissional é uma dessas pessoas e ele, por ser humano (além de profissional) talvez também não goste, talvez como ela, de sentir odores mal-cheirosos. Temos a necessidade da vida social e para essa vida social existir em nível relativamente satisfatório há elementos básicos que podem atrapalhar. Um deles é o asseio. “Poderá tu viver bem, com as pessoas conseguindo te ouvir e te dando a devida atenção a fatores como as tuas necessidades caso tu estejas sujo e em má aparência?”. Como podemos ver, esse trabalho é pedagógico, mas certamente é diferente do modelo tradicional do dever através da autoridade. A autoridade aqui é trocada pela necessidade. Há quem diga que “a necessidade é a mãe do aprendizado”, pena não ouvirmos a simplicidade e a natureza humana.
Citei exemplo prático e simples de higiene, mas que interfere diretamente na vida social e nas possibilidades de talvez o usuário ter um trabalho e circular pelo ambiente urbano sem ser discriminado, além do fator psicológico de ser portador de “doença mental”. Caminhando em direção a questões como plano de vida, nos motivos pelos quais ela se motive no presente para chegar até a realização do sonho, é mais difícil ainda; creio não estarmos preparados profissionalmente tampouco em nossas vidas privadas. Tanto os usuários como os “sãos” vivem em um vazio existencial. Ambos em dificuldades de encontrar um sentido pelo qual valha a pena viver. Profissionais de todas as áreas, cientistas de várias áreas do saber, enfrentam as mesmas dificuldades de encontrar um motivo pelo qual faça cada dia ser preenchido por algo além de trabalho, estudo e lazer. Quando perguntamos a um usuário “pelo que tu vives?” a reação não é diferente do profissional ou de alguém que por acaso pararmos em alguma rua. Muitas se chocam, outras acham que é uma brincadeira, outras saem da nossa frente; poucas cogitam refletir, por poucos segundos que seja, sobre: “Afinal, por que eu vivo?” (por qual motivo), “para que eu vivo” (por qual utilidade) ou “por quem eu vivo?” (por quem devo entregar meus esforços).

3. A SOCIEDADE DO VAZIO, VÁCUO EXISTENCIAL E O VÁCUO MORAL
Nas faculdades de psicologia não desenvolvemos as faculdades éticas, pois psicologizamos valores através de objetos simbólicos, aparentando estarem longe, lá na infância, onde apenas introjetamos o aparelho psíquico dos pais. Temos a impressão de que a responsabilidade sobre as escolhas não está em nós, mas nos pais; que já estou “feito”, sou somente um joguete e que alguns anos de análise ou determinado número de sessões preestabelecidas pelo sábio técnico serão suficientes para a “mudança terapêutica”. Temos “superego”, “mecanismos de defesa”, “constructos”, “formações reativas”, “contenções homeostáticas dentro de um processo de estímulo e reação”, e assim por diante. Em momento algum vemos a palavra moral, pura e simples. Esquecemos milhares de anos sobre o estudo dos comportamentos humanos, há muito chamados de ethos, motivados por valores sejam eles morais, vivenciais ou sociais. A ética, estudo filosófico da moral, essa que agora esquecemos, deturpamos e jogamos para longe através dos simbolismo e da psicologização, se reflete na incapacidade do psicólogo dar conta de ter um ser humano dotado de uma doença ética, não psicológica. Frankl aponta para as neuroses noogênicas, advindas não do aspecto psicogênico, mas do vazio de valores, “motivos vivenciais”, do vácuo moral que existe no indivíduo (particular) e que reverbera no meio (social).
“À diferença do animal, o ser humano não é mais comandado por impulsos e instintos no que ele deve fazer. E, contrastando com a pessoa humana em outros tempos, não há mais tradições e valores que lhe ditem o que fazer. Então, sem saber o que precisa fazer nem o que deveria fazer, ele às vezes não sabe nem mesmo o que basicamente desejava fazer. Ao invés, ele deseja fazer aquilo que outras pessoas fazem – o que é conformismo – ou faz o que outras pessoas desejam que ele faça – o que é totalitarismo” (FRANKL, 1979).
Por si, esses dois efeitos não constituem uma neurose típica dos manuais psicanalíticos ou cognitivistas, e, caso a diagnosticássemos, seria uma neurose noogênica. Desses dois fatores pode surgir sintomatologia clínica - como a chamada “experiência de abismo”, que é quando o indivíduo relata, muitas vezes em fala literal, que está diante de um abismo ou de um buraco onde dificilmente vê o fundo, quando não expressa o sentimento de estar em contato consigo, com sua vida, com a possibilidade de escolher. Segundo James C. Crumbaugh , criador do teste que diferencia as neuroses psicogênicas das que implicam em falta de sentido, 20% das neuroses diagnosticadas são de ordem noogênica. Elisabeth S. Lukas, com o seu Logoteste, evidencia que entre estudantes europeus 25% deles tinham passado por experiência de abismo. Frankl aplicou esse teste entre seus estudantes americanos. O resultado não foi 20% ou 25%, mas 60% dos seus alunos já foram acometidos pela experiência de abismo – em contraponto a “experiência de auge”.
Um psiquiatra comunista verificou entre a população de estudantes tchecos, utilizando o teste de Crumbaugh, que o percentual de vácuo existencial era maior que os resultados obtidos nos Estados Unidos, mas que um ano após a aplicação do teste o percentual caiu substancialmente. O que ocorrera nesse ano é que a maioria dos estudantes passaram a se envolver com o movimento Dubcek a favor da luta da liberalização da política e pela humanização do comunismo. Eles encontraram uma causa pela qual lutar, viver e infelizmente também morrer.
Em que ponto a questão do sentido toca a saúde mental de uma pessoa? Com exemplos, descrições e pesquisas podemos aplicar essas questões ao jargão “saúde mental”? Sim.
A saúde mental nesses casos não está baseada em técnicas ou psicoterapia que tenta equilibrar ou amenizar tensões; baseia-se exatamente na tensão saudável entre dois pólos: aquilo que já alcançou e aquilo que pode alcançar; o hiato entre ser o que se é e o que se deveria vir a ser. “Essa tensão é inerente ao ser humano e, por isso, indispensável ao bem-estar mental. Não deveríamos, então, hesitar em desafiar a pessoa com um sentido em potencial a ser por ela realizado” (FRANKL, 1984). O ser humano não precisa de descargas de tensões a todo e qualquer custo, mas de um desafio à espera do cumprimento. Como o profissional da saúde pode ajudar? Certamente não é elaborando um histórico de vida pregressa, estudando as questões edípicas ou dando-lhe sermões sobre o que deve querer e como deve proceder. Tal como Rogers defende, o papel daquele que se propõe a realmente ajudar não é o de dar o seu significado ou a sua interpretação ou interpretação teórica sobre passado, presente ou o que deveria vir a ser no futuro, mas ajudar a pessoa a encontrar um sentido; o seu próprio sentido, tanto sobre as questões subjetivas quanto as existenciais. Ao contrário de outras abordagens, quem se propõe a facilitar o encontro com o sentido não cai em abismos infinitos de intelectualidade; ele auxilia - muitas vezes surgindo dores - a pessoa traçar o local onde está e onde quer/deveria chegar. Tendo os pólos traçados, passa-se a elaborar os passos entre um pólo e outro. O foco agora é caminhar e construir os meios para chegar aos fins (sentido, realização, tarefa, missão). Importante salientar que o sentido pode não ser estanque, do tipo que quando se chega até ele, todo o resto da vida não tem mais motivo para ser vivida. O processo de vida é, por si só, rico de sentido; como diria Frankl, e a felicidade nunca é alcançada quando focamos especificamente sobre ela; a felicidade, tal como o sentido, só pode ser alcançado quando esquecemos.
Felicidade é a realização e vivência de valores ricos em sentido; é a vida experienciada com a responsabilidade que a liberdade pede; são atitudes frente as dificuldades que inevitavelmente temos de enfrentar. De outro lado, a fuga, a desresponsabilização pela própria vida e principalmente por aquilo que é inerente ao ser livre: A escolha. Não conseguir escolher ou não acreditar que é possível se posicionar é deveras angustiante e frustrante. Todos os dias vejo diante dos meus olhos o retrato do niilismo, do vazio e do descaso com a vida; existe uma grande dificuldade por parte dos usuários do sistemas de saúde no que tange a responsabilidade com a própria vida. Eles não se sentem senhores de si, parece-me que são alheios a si mesmos, como se fossem expectadores. Com muita segurança afirmo que isso é reforçado desde cedo e continuam recebendo esse modelo de viver a vida quando os profissionais dizem o que devem e não devem fazer, como se fossem marionetes. Se sou doente, que me tratem, tragam a minha cura, escolham e ajam por mim. Não exercito minhas faculdades, não elaboro meus anseios, muito menos os coloco em prática.
Além da desresponsabilização do destino e de ser quem se é, vivemos a “neurose sociogênica”, que é um fenômeno correlacionado a ela. A tríade neurótica de massa apresenta os três maiores problemas atuais da humanidade: depressão, dependência e agressão. Viktor Frankl certa vez questionou um taxista a partir do tema da conferência que iria participar. “A nova geração está louca?”, perguntou. Sucinto o taxista respondeu: “Claro que estão loucos; matam-se a si mesmos, matam uns aos outros e vivem drogados” (1979, p.86).
Quanto ao primeiro aspecto da tríade, a depressão pode resultar em suicídio. Já em 1964, Earl A. Grollman proferiu: “O suicídio, que em outros tempos ocupava o vigésimo segundo lugar na lista de causas de morte nos Estados Unidos, está agora em décimo lugar, e em alguns estados, em sexto. E para cada um que consegue cometer suicídio, há quinze que tentaram e não conseguiram”. A raiz desse fenômeno é frustração existencial, como mostra outro estudo realizado pela Universidade Estadual de Idaho. De sessenta estudantes que haviam tentado suicídio, cinqüenta e um (85%) apontaram com razão que “a vida não tinha nenhum sentido”. Em outras pesquisas, tal como a da Dra. Betty Lou Padelford que estudaram as hipóteses do uso abusivo de drogas, as razões muitas vezes apresentadas foram em torno do “desejo de encontrar sentido na vida”. Estudos epidemiológicos conduzido pela Comissão Nacional de Abuso de Maconha e Drogas dos Estados Unidos fez um levantamento com quatrocentos e cinquenta e cinco jovens e estudantes de San Diego diz que consumidores tanto de maconha como de alucinógenos indicaram que “estavam perturbados pela falta de sentido em suas vidas”. A United States International University, em 1970, fez uma pesquisa sobre alcoolismo. Dentre vinte alcoolistas, dezoito consideravam sua existência destituída de sentido e propósito. A psicoterapia orientada para a busca do sentido, em casos de alcoolismo, apresentou melhores resultados comparado a outras abordagens. James Crumbaugh diz que durante seus trabalhos no Centro de Reabilitação de Dependentes de Narcóticos a “minha abordagem ao lidar com o viciado resultou no índice de sucesso de 40% ao longo de três anos, quando a média na instituição foi de cerca de 11%”.
No Brasil, 24 pessoas cometem suicídio por dia. Em Porto Alegre a proporção de suicídios é a maior entre todas as capitais brasileiras: 12 para cada 100 mil habitantes. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE, publicada na revista eletrônica Folha Online, os números são maiores (dentro de 20% maior), pois nem todos os casos são registrados. “O número de casos de suicídio cresceu 60% nos últimos 45 anos, de acordo com a OMS. A organização estima que, de 2002 a 2020, o aumento será de 74%, chegando a um suicídio a cada 20 segundos -hoje, a taxa é de um a cada 40 segundos. ‘O que há de mais concreto [para explicar o aumento] é a associação com transtornos mentais, principalmente a depressão, mais presente e identificada hoje’, diz Sabrina Stefanello”, na mesma matéria publicada em março de 2010.
Quanto ao terceiro aspecto da tríade, a agressão, sempre foi tratada de forma antiquada no modelo mecanicista de sistema fechado. Nesse sistema, o mundo serve, em última análise, apenas como instrumento para a redução das tensões suscitadas e criadas por impulsos libidinosos ou agressivos. Em contraponto, a visão é de que o ser humano na realidade é um ser que tateia em busca de sentidos a cumprir e em busca de contato com outros seres humanos. A agressividade, nesse ponto de vista, é a impossibilidade de encontrar o sentido para a própria existência, buscando de forma deturpada nos outros e no mundo. Como o eu se frustra na busca pelo propósito, ele ataca esse mundo que oferece as oportunidades para o seu desenvolvimento e as pessoas que, para ele, não entregam as respostas que ele deveria dar à vida.
Chegamos ao ponto-chave que põe à prova três aspectos do reducionismo: subjetivismo, homeostase e pandeterminismo.
“Se sentidos e valores são nada mais que mecanismos de defesa e formações reativas, será que a vida realmente vale a pena ser vivida? Não seria antes compreensível que então eu me afunde em depressão e acabe me suicidando? E quanto à dependência de drogas: caso o ser humano realmente estiver apenas buscando prazer e felicidade pela gratificação de suas necessidades a fim de se livrar das tensões por elas criadas, por que então me preocupar? Por que não estabelecer uma tranqüilidade perpétua e perfeita simplesmente tomando drogas? E, finalmente quanto à agressão: se realmente sou vítima de circunstâncias e influências exteriores e interiores, isto é, produto do ambiente e da hereditariedade, e se meu comportamento, minhas decisões e ações são nada mais que resultado de condicionamentos operantes e processos de aprendizagem – quem terá o direito de exigir que eu melhore ou de esperar que eu mude?” (FRANKL, 1979, p.92)
Sobre a mesma idéia de Nieztche: “Ninguém morre de verdades mortais atualmente: há antídotos em profusão” (1878, p.272). Não há necessidade de responsabilidade; há infinitas desculpas, inúmeros álibis. Quanto a mim, não sou livre nem responsável. Sendo assim, não há razão por que eu não deva extravasar meus impulsos agressivos, pois nada posso fazer a respeito, a não ser seguir conselhos, me comportar artificialmente ou procurar algum analista que me faça acreditar que meus pais e a sociedade são os responsáveis pelo meu comportamento. É exatamente assim que vêem os neuróticos, psicóticos e etc. Profissionais tratam assim os que deveriam ser instigados a tomarem partido sobre as suas vidas, ao invés de ficarem em nossas supervisões confabulando, em ciclos viciosos, que nada acrescentam de novo na relação com o paciente.
Nós psicólogos, cientistas, pensadores, catedráticos e escrevinhadores somos responsáveis por muito da influência da extinção da moral na sociedade. As pessoas que nos propomos hipocritamente a ajudar, para nós, são destituídas de valores. Os pais impõem suas idéias e valores aos filhos; professores projetam seus planos de aulas e catequizam as crianças de acordo com os seus próprios valores; a sociedade mostra de todos os lados o quanto estamos vazios – seja pelo governo que prega “crescimento do país” como sinônimo de poder de consumo. Estamos enriquecendo, conseguindo adquirir bens (que em pouquíssimo tempo viram bugigangas), mas falta muito para deixarmos o estado de ignorância. A cultura que vivemos é a da malandragem, do ser “esperto” (passar o outro para trás), ao invés de alcançar pelo próprio esforço, através das próprias mãos, do valor que é construir a partir e através de valores éticos. Como referido acima, se estou vazio, não me encontro em nada à minha volta, sou incapaz ou não desejo encontrar um sentido, usarei de meios deturpados para tentar preencher esse vácuo. O crack está aí, o oxi surgiu há pouco, a cocaína está em aumento de produção e consumo. Não temos somente as drogas psicotrópicas: os shoppings estão cheios de lojas prontas para oferecer objetos para a satisfação. Os tratamentos disponíveis são paliativos e erram o alvo.
A reforma psiquiátrica já deu grandes passos. A humanização do Sistema Único de Saúde já avançou muito. Temos grandes aberturas entre os médicos psiquiatras, mas ainda temos grandes avanços a cumprir.
“Nós psiquiatras não deveríamos mexer em campos que não o nosso. Eu diria que cada questão merece ser tratada por um especialista. Portanto, por que não deixar algo, digamos, com os sociólogos? Nós, psiquiatras, simplesmente não temos a resposta para todas as perguntas. Muito menos dispomos de uma receita para curar todos os males e achaques que afligem a nossa sociedade. Comecemos por humanizar a psiquiatria, em de ficar divinizando-as e, antes de mais nada, vamos parar de dar atributos divinos aos psiquiatras. Nós, psiquiatras, não somos oniscientes nem onipresentes. Somos apenas onipresentes; estamos em todos os simpósios, intrometendo-nos em todas as discussões...” (FRANKL, 1979, p.116).
Talvez se fôssemos menos centrados em nossos conhecimentos acadêmicos aprenderíamos mais facilmente com ensinamentos como os do campo de concentração. Somente aqueles orientados para o futuro, com uma meta a cumprir, um sentido a cumprir para “daqui para frente”, tinham chances de sobreviver. Agora Frankl bate sobre a questão da humanidade como um todo, em sua sobrevivência. “Somente existe esperança de a humanidade sobreviver enquanto ou assim que as pessoas chegarem a uma consciência de denominadores comuns em termos axiológicos” (1979, p.115). Haverá valores e sentidos que possam ser compartilhados pelas pessoas – e pelos povos? Ele diz que não seria suficiente que tivéssemos um só Deus, tendo o monoteísmo como salvação. Mas a consciência sobre uma só humanidade, respeitando os seus sentidos e levando-os em conta. Ele chama essa percepção de monantropismo.
O autor vienense fala sobre o instinto ético, que difere sobre os instintos vitais. O instinto ético, ao contrário do segundo, não é geral, mas aplicado a algo individual e concreto. Tal como instinto vital, o primeiro pode se desvirtuar e se enganar, por seguir e obedecer a princípios da moral que lidam somente com generalizações. Na verdade, a consciência sempre compreende o onde concreto (Da) do meu ser pessoal (Sein).
Em consonância com os autores acima, Frankl diz que nossa época necessita de educação que não somente transmita conhecimentos, mas que aguce a consciência para que a criança desenvolva sua percepção e capte a exigência inerente a cada situação individual. Faz uma analogia aos 10000 mandamentos que se ocultam de forma cifrada em 10000 situações com as quais ele se confronta na vida. A criança, nesse modo, ficará imunizada contra o conformismo e ao totalitarismo. Educação é educação para responsabilidade.  A nossa sociedade é sociedade de abundância ou superabundância, se preferir. Temos enxurradas de bens materiais e informações; cada vez mais livros e revistas empilhadas; são explosões de percepções sensoriais, não somente de ordem sexual. Se quisermos subsistir ante esses tsunamis de informações e sensações trazidas pelos meios de comunicação de massa, precisamos discernir entre o que é importante e o que não é essencial; em uma palavra: entre o que tem sentido e o que não tem.
Tenho refletido muito sobre o adoecimento mental e levantado hipóteses sobre as suas causas. Não creio que o ser humano se constitua através do outro, como se a sua constituição física (mente, órgãos e membros) passasse por um filtro subjetivo, moral e psicológico dos pais, professores, sociedade (outro); ele intuitivamente ou racionalmente pode não aceitar essas formas de viver, de pensar e agir, propondo para si mesmo (consciente ou inconscientemente) uma forma singular de existência. Vemos esses fenômenos existenciais em gêmeos muito diferentes um do outro, muitas vezes um desenvolvendo algum transtorno mental ou grandes dificuldades para se desenvolver, ao passo que o irmão, vivendo no mesmo ambiente, com os mesmos pais e dividindo a mesma “subjetividade” não desenvolve doenças mentais e relativamente sofre menos do que o outro. Toda relação é baseada em valores, não somente por uma subjetividade no modelo “cópia exata dos modelos parentais”; as ações entre as relações permitem infinidades de possibilidades baseadas em valores e princípios que, de forma direta: dando valores e dando limites, ou indireta: facilitando o pensamento e reflexão sobre formas de viver (verdadeira ética) tendo valores, princípios, legislando sobre suas próprias leis e limites. Essa é a educação baseada na responsabilidade, no princípio das coisas, na liberdade genuína que só existe quando há o reconhecimento e o assumir responsabilidade sobre ser-aí-então.
A loucura moral co-existe com a loucura psicológica ou é independente do fator psicológico. Os “sãos da cabeça”, como vimos ao longo do trabalho, estão mergulhados nos seus abismos, destituídos de por quês e significados. Mal conseguem escolher entre um modelo de celular e outro, entre um parceiro sexual ou assumir um “relacionamento sério”. O que falta são valores que dêem base as suas escolhas, ajudem a pessoa a encontrar o norte da sua vida, desde atividades como ler um livro de auto-ajuda ou procurar uma psicoterapia. Estão tateando em busca de alguma coisa, quando o que mais lhes falta é impossível de ser tocado ou mensurado. Não temos mais legendas e bulas que nos ensinem a escolher. Quando surge algum conselho, seja de um amigo ou do horóscopo do jornal, agarramos com toda força e tomamos como nossa bóia salva-vidas em um mundo que parece ser gelado como o mar nórdico. Buscamos orientações psicológicas, deitamo-nos em divãs e vamos à drogaria procurar por algum alívio através dos inúmeros psicotrópicos anestésicos que nada modificam na atitude diante da vida tampouco dão algum sentido à ela.
Muitos valorizam a supervalorizam auto-interpretação e não pouco freqüente dizem: “Estou em busca do meu Eu. Preciso me aprofundar e me conhecer. Só assim poderei ser feliz”. Vejo mais um indício de vácuo existencial. Assim como o bumerangue que volta à mão do caçador, a frustração por não ter alcançado o sentido da sua existência faz com que o indivíduo volte-se para si mesmo na esperança de encontrar alguma coisa. O bumerangue só volta quando não atinge o seu objetivo, não atingindo a caça (finalidade), retorna. Isso explica as infinitas experiências que freudianos tem passado com seus pacientes (muitas vezes passando por anos de análise) que por causa da sua frustração em busca do sentido acabam por substituí-lo pela terapia sobre o divã. Ao contrário do vulgo, o homem é orientado para fora de si, não busca uma homeostase de uma libido; ele quer algo além, é impelido a buscar algo fora de si - uma pessoa, um objetivo, uma obra, uma contemplação, alguém para o qual possa ser útil, etc. – cabe a nós psicólogos, convidados pela filosofia, viventes em busca de um sentido, ajudar, facilitar ou deixar com que o sofredor possa encontrar por si o seu por que viver.
CONCLUSÕES
As ciências e a filosofia atestam que só há mudança quando algo anterior é modificado. A causa de um efeito precisa ser modificada para que talvez mude o efeito. Diariamente chega aos nossos órgãos sensoriais sucessivos escândalos de corrupção, atrocidades, genocídios e casos que não tocam nossa alma como tocou a alma daquele niilista que nada sofre, como se estivesse alheio ao mundo, como se nada disso pertencesse a sociedade de que também é responsável. Infelizmente nossa percepção e, por conseqüência, nossa reflexão está anestesiada – não por efeito de psicotrópicos, mas pelo niilismo, pelo vazio que nos toma conta. Nossa doença é moral. Escolhemos “representantes” que não representam a nossa vontade (como se outro ser humano pudesse querer o que desejo). Eles não nos ouvem, ignoram nossos anseios; tornamos-nos mudos tentando falar em libras, esperando que cegos nos compreendam. Não há sentido no trabalho do político. Ele não é político, não está imbuído de ser o um “artista das relações”; ele não se relaciona com o externo, somente com a sua vontade de prazer e poder. Nesse aspecto sim, o político brasileiro é o fiel representante do nosso vazio, da vontade de sentido desvirtuada em vontade de prazer e poder sobre os que estão à nossa volta. O povo merece o governo que tem, pois foi ele quem o escolheu, e tem responsabilidade sobre essa escolha. Se nenhum partido ou grupo político está de acordo com os anseios do povo, por que esse povo não se mobiliza para fazer a sua própria forma de agir politicamente, sem intermédio da mesma meia dúzia de caveiras de dinossauros que há tanto tempo corrói nossos ossos? Em 1985, Frankl surpreendeu estudantes em uma conferência na Universidade Karl Marx ao afirmar: “Eu só conheço dois estilos de se fazer política, ou dois tipos de políticos: O primeiro acha que os fins justificam os meios. O segundo tem plena consciência de que existem meios capazes de dessacralizar até o mais nobre dos fins”.
Estamos depressivos e moribundos, nossa auto-estima se baseia na cultura negativa do “pelo menos”. “Pelo menos... temos o SUS”, “pelo menos... não estamos em guerra”, “pelo menos temos bolsa família”, “pelo menos... podemos votar”; como se a miséria ética das instituições, do nosso intelectual e moral fosse uma dádiva divina comparada a outros países do mundo que vivem também em miséria - numa miséria “maior” do que a nossa.
Setenta por cento da população brasileira é analfabeta funcional. Ser analfabeto funcional é ler um texto, mentalmente ou verbalmente emitir sons das palavras de um texto curto, mas não conseguir encontrar os significados e o sentido contido nele. Se somos incapazes de encontrar sentido em um texto, seremos capazes de encontrar um sentido em algo tão maior como a nossa vida ou nossa sociedade? Uma sociedade “analfabeta moralmente” elege corruptos porque diariamente desrespeitamos as regras mais básicas de convivência como filas, depositar o lixo no devido lugar, mentir para manter seu cargo após ter negligenciado o seu serviço, apontar o outro como a causa das minhas ações - dentre outros inúmeros exemplos. O que acontece na esfera de política pública é exatamente o que acontece no âmbito privado e individual. Onde pode ocorrer uma verdadeira revolução?
Carl Rogers faz uma analogia ao modo que indígenas americanos caçam. Estudando os comportamentos dessas tribos, ele viu que os indígenas eram muito hábeis enquanto caçavam, pois dificilmente voltavam para a aldeia de mãos vazias. O fator preponderante para isso era o silêncio com que eles se movimentavam na selva enquanto procuravam a caça. Movimentavam-se levemente, como se não tocassem o chão. Assim pode acontecer com o ser humano consciente de uma responsabilidade: evoluindo sem fazer alarde, caminhando levemente em busca do seu objetivo e se desenvolvendo de dentro para fora, constitui o que ele chama de revolução silenciosa. Rousseau, Rogers, Frankl - e tantos outros – apontam que a educação de dentro para fora, centrada nos valores humanos, na responsabilidade, na valorização dos meios e ferramentas que o próprio ser humano é capaz construir, é capaz de modificar o mundo, possibilitar uma vida mais digna e facilitar o surgimento da felicidade de um povo.
Immanuel Kant disse que duas coisas o impressionavam: A lei das estrelas acima dele e as leis morais em seu interior.
Os físicos Barrow e Tipler consideram perfeitamente possível descrever mecanicamente o Universo a partir das leis da física, mas que em algum momento a cosmologia deve levar em consideração a influência  de pessoas humanas em suas investigações e que o humano só pôde surgir no universo devido a determinadas condições. Stephen Kawkings acrescenta que a vida inteligente só pode existir em regiões determinadas de um universo onde as leis físicas propiciem o seu surgimento. O Princípio Antrópico Forte (uma teoria sobre o surgimento da vida humana inteligente) diz que “o universo deve possuir todas as propriedades que permitam o desenvolvimento da vida em algum estágio de sua história. É forte no sentido do que impõe agora a vida como uma necessidade do universo” (Revista Ciência e Vida – Filosofia da Mente, pág. 78). Existe ainda o Princípio Antrópico Final que propõe que a consciência, que parece ser inerente à vida, tem como objetivo a auto-organização da matéria com a finalidade da utilização eficiente da energia e que assim evitaria condições de autodestruição do universo. Eugene Wigner (Prêmio Nobel de Física de 1963) entendeu que toda informação de um objeto é possível de ser alcançada, mesmo que expressa por uma probabilidade, é comunicável. Todo observador consciente interage com o universo físico e é capaz de modificá-lo. Essa teoria explica o que chamamos de liberdade, pois temos a possibilidade de modificar algum objeto, temos a capacidade e possibilidade de nos chamarmos de Eu, como se estivéssemos em paralelo ao universo. Como diz Paulo de Tarso Gomes, o autor deste artigo: “Talvez, mais do que nossa liberdade como fundamento da nossa individualidade, a liberdade também parece possuir um papel dentro da organização do universo”.
Se temos um papel no universo, mesmo nesse sentido que parece distante, “lá no cosmo”, será que temos uma finalidade aqui, junto da humanidade, ao lado das pessoas que nos propomos a ajudar, na sociedade que participamos e temos parcela de responsabilidade? Penso que sim. Afinal, as leis humanas parecem não estar tão distantes das leis das estrelas.

REFERÊNCIAS
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_________. Tornar-se pessoa [trad. Manuel José do Carmo Ferreira, Alvamar Lamparelli]. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001
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