04 abril, 2011

Entre a terra e o asfalto


Buzinas, burburinhos, carroceiros, ônibus jorrando fumaça, buzinas de motoboys e borboletas no asfalto são comuns na vida porto-alegrense. Temos os cortes de cabelo, vendem e compram ouro; picanha, alface, buchada, erva mate, suplementos alimentares e muito cheiro de peixe fresco - e não tão fresco; andamos entre bancos, praças, pichações, ratos-alados e alguns deputados; a poluição é grande na capital. “Vrum”, “bee”, “pof”, “crrrrri”, “rrrom ppppf”, exclama o trânsito. A multa é “caneteada” pelos azuizinhos e autuada em nossos ouvidos. Os restos dos habitantes vão parar nas bocas lúgubres dos mendigos esquecidos pela sociedade; esses deitam sobre os catarros e excrementos das calçadas. A vida na cidade é bela.

Temos necessidade dos tais grandes centros, onde há muito e pouco se encontram; encontramos muitas coisas, nos aproximamos pouco das pessoas. Não faço paralelos nem uso o interior como parâmetro para medir o quanto é bom ou ruim a cidade ou “as grota”, mas penso existir uma diferença entre viver na cidade e em lugares mais calmos, onde há menos anônimos e mais pessoas. Em lugares assim as pessoas estudam do jardim até o ensino médio juntas, aí partem para as faculdades da cidade. Passam anos convivendo, cultivando amizades próximas e verdadeiras, mas chega a hora de partir. O baque é grande nesse êxodo, tanto sentimentalmente como também na locomoção, transporte, tempo gasto no trânsito, valores gastos para se locomover. E aí está um grande paradoxo: As pessoas se movem muito, mas dificilmente saem da rotina do além-linha-de-ônibus/carro-estacionamento-casa-faculdade. Damos graças à Deus por chegar a sexta-feira, preparar o drink ou colocar aquela (!) cerveja no congelador (para “gelar” o mais rápido possível).

Já falei a algumas pessoas sobre o meu desejo de ir para o interior, de preferência a serra gaúcha, depois ter vivido a vida na cidade, constituído família, conquistado a independência financeira, as missões que devo cumprir como ser humano por aqui. Lá quero uma casa com piso de madeira, lareira, fogão à lenha, patos, galinhas, gansos, cachorros e gatos andando e fazendo barulho, agora no além-janela-vistadamontanha-árvores-cheirodeeucalipto. Terei uma janela com vista para as montanhas, eucaliptos, araucárias, cedros e cipós. Lá embaixo pode ter um Rio estreito e uma estradinha de terra onde só passa um carro ou uma carroça. Estarei velho; precisarei de um carro. Poderá ser um Gol 1000, equivalente a um Fusca nos nossos dias. A venda (armazém) pode ser longe; cinco ou dez quilômetros, tanto faz, terei bastante tempo. Precisarei somente de polenta, arroz, feijão, sabonetes, sabão, pasta de dente e sementes. Na horta planto alface, tempero verde, cebola, pimentão e tomate. Ali ao lado tem batata, milho, melancia e o arvoredo com laranjas, bergamotas e ameixas.

Parece sonho, mas um dia já tive isso e quero novamente. Quando tive, foi na infância e por toda a adolescência. Vivi entre cidade e fazenda, mas não refletia sobre o abismo que existe entre o asfalto e as porteiras de madeira cortada na própria fazenda. Os peixes eu mesmo pescava, a carne era dos bois que eu mesmo ajudava a tratar e curar. Os ovos eu apanhava ainda quente, recém saído da galinha. Queria uma laranja? Ia até o pé, arrancava e puxava da adaga e deixava as cascas ali mesmo, sem poluir nada. Jabuticaba tinha tanto que nem os passarinhos davam conta de comer. É uma vida mais próxima do natural.

Não citei a mulher. Será que a terei nessa idade? Quero ter filhos e, aliás, tenho a intuição que o primeiro será primeira. Quero educá-los o mais próximo possível de como a natureza os educaria. A sociedade e cidade ensinam muito, instruem muito, mas educam proporcionalmente ao contrário; quero ser pai, não instrutor ou mais um mero informador. Quero oferecer a terra para eles pisarem, os brinquedos de madeira para estragarem e os computadores para eles estudarem, se informarem e se comunicarem. Os livros estarão ao alcance e claro que tentarei mostrar e oferecer os que acredito serem da alma e de proveito para eles, mas não privarei de lerem supérfluo, até porque eles podem servir, inclusive, de parâmetro do que não ler. Não desejo que cuspam no chão nem dêem esmolas aos mendigos, mas que prefiram comprar comida e votar em pessoas que possam dar educação e instrução a essa pessoas; que meus filhos sejam solidários desde a raiz, como as das plantas que eu desejo cultivar.

Aqui pela cidade quero trazer um pouco da humanidade de cada pessoa, a naturalidade e espontaneidade de quem não tem vaidade a zelar. Não quero pessoas entre excrementos, escarros e carros baforando fumaças nelas. Quero comprar o que necessito sem que gritem em meus ouvidos como se estivessem em uma guerra para ver quem lucra mais ou conquista mais clientes. Quero que cada um tenha o seu canto, o seu espaço e esse espaço seja calmo, mesmo que na cidade. Desejo um dia ter uma vida calma, onde eu possa escrever coisas melhores que essas, sem ter janelas piscando; mas somente um minuano com eucalipto e o cheirinho da comida da nega véia subindo entre os frisos do assoalho.

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