01 abril, 2011

Por que mentimos?

"Aquele que sente a necessidade que tem do auxílio dos outros e experimenta continuamente sua benevolência não tem nenhum interesse em enganá-los. Pelo contrário, tem um sensível interesse em que vejam as coisas como são, temendo que eles se enganem em seu prejuízo. É claro, portanto, que a mentira de fato não é natural às crianças, mas a lei da obediência que produz a necessidade de mentir, porque, sendo penosa a obediência, secretamente dispensamo-nos dela o mais possível, e o interesse presente de evitar o castigo ou a censura sobrepuja o interesse distante de dizer a verdade.

Na educação natural e livre, por que vosso filho vos mentiria? Que tem ele para esconder de vós? Não o repreendeis, não o punis em nada, nada exigis dele. Por que não vos diria tudo o que fez com tanta inocência quanto ao seu coleguinha? Ele não pode ver nessa confissão mais perigo de um lado do que do outro.

(...)

Segue-se daí que as mentiras das crianças são todas obra dos professores, e que querer ensiná-las a dizer a verdade não passa de querer ensiná-las a mentir. No afã que se tem de regrá-las, de governá-las, de instruí-las, nunca se encontram instrumentos suficientes para ir até o fim. Querem-se abrir novas perspectivas em seu espírito através de máximas sem fundamento, de preceitos sem razão, e prefere-se que saibam suas lições e mintam a que permaneçam ignorantes e verdadeiras.

Quanto a nós, que só damos a nossos alunos aulas de prática e preferimos que eles sejam bons a que sejam doutos, não exigimos deles a verdade, por medo que a disfarcem, e não os fazemos prometer nada que sejam tentados a não cumprir. Se acontecer em minha ausência algum mal cujo autor eu ignoro, evitarei acusar Emílio ou dizer-lhe: Foste tu?

Nada mais indiscreto que tal pergunta, principalmente quando a criança é culpada; então, se ela acreditar que sabeis o que ela fez, verá que lhe preparastes uma armadilha, e tal opinião não poderá deixar de indispô-la contra vós. Se ela não acreditar, pensará: Por que revelaria eu o meu erro? E eis que a primeira tentação da mentira tornou-se o efeito de vossa imprudente pergunta.

(...)

O pormenor em que acabo de entrar a respeito da mentira pode sob muitos aspectos aplicar-se a todos os outros deveres, que só sob muitos aspectos aplicar-se a todos os outros deveres, que só prescrevemos às crianças para torná-los, além de odiosos, irrealizáveis. Para parecer que lhes pregamos a virtude, fazemo-las amar todos os vícios. Damo-las a elas ao proibirmos que os tenham."


Trechos retirados do livro "Emílio" ou "Da Educação" de Jean-Jacques Rousseau.

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