13 outubro, 2009

Do lado de cá

Ela via tudo do lado de cá, atrás das grades da própria janela. Não sabia mais como era andar pela rua ou sentar ao lado de alguém na padaria. Largou o emprego, fez de tudo para não atender mais ninguém ao telefone. Decidiu renunciar a tudo e a todos que estivessem do lado de fora do quarto. A dúvida era se o que deixava de fazer realmente fazia falta e se a vida dentro do próprio quarto era melhor que o mundo externo.

Ignorava os chamados quase histéricos da mãe, os pedidos para um êxodo até a praça, nem a fome a tirava daquele lugar. O mundo clamava pela presença dela. Mas mal sabiam que ela estava construindo o próprio mundo que só ela podia acreditar que fosse possível de existir. Assim, amigos, ex-amantes, colegas de cursinho, o cobrador do ônibus e o próprio irmão acabaram por desistir de “ajudá-la a sair da concha”, como ele dizia . Parecia que nada era capaz de levá-la para um lugar diferente do banheiro e da cozinha; as incursões eram raras e sorrateiras, mas somente durante a noite.

Em duas únicas vezes resolveu dizer algo aos que perguntavam. As respostas escritas em folhas de caderno de desenho eram passadas por debaixo da porta do quarto - realmente havia construído uma trincheira. O que continha nas cartas, que mais pareciam bilhetes, era coisas como “prefiro ficar aqui comigo mesma”, “cansei da vida aí fora”, “aqui ninguém pode me fazer mal”. Por vezes sentia desejos e impulsos que a mandavam pular para o pátio, que era um tanto convidativo com todas as suas flores, grama bem cortada, um balanço e as visitas de alguns passarinhos. Porém, nada era tão certeiro quanto dormir durante a tarde e um bom pedaço da noite. Preferia esses horários porque sentia que conseguia ler melhor os seus livros. O que chamava muita atenção nela é que preferia livros com capas mais claras, contrastando com a luminosidade taciturna do ambiente onde vivia.

Algo instigava a frágil moça. Não era fácil, apesar de todos seus pensamentos que a consolavam sobre a renúncia das “osmoses diárias” (termo utilizado por ela) que o mundo exterior poderia oferecer, em paradoxo com o brilhantismo de poder se encontrar sem a influência daqueles que a causavam medo. Calafrios surrupiavam qualquer desejo de ir ao banheiro, mesmo que a bexiga estivesse prestes a estourar. A fome era domada com destreza pelas lembranças do colégio na infância. O doutor experimentou fazer o telefone dela tocar... em vão. Tocou quatro vezes, na quinta o fio já estava arrebentado.

Ocorriam pensamentos de morte quase que ininterruptamente durante os minutos que precediam o sono profundo. O consciente e o pré-consciente pareciam uma só, tamanha intimidade que o travesseiro já tinha com a fuga daquela realidade. Pesadelos já não eram mais vistos como pesadelos, muito menos como algo ruim. Imagens eram misturadas com sopros de ventania, portas batendo, cortinas acenando pela janela e até visitas de pessoas que há muito não via, sendo, geralmente as que não cobravam a presença dela nesses tempos.

Não havia parâmetro nem noção de tempo. O único indicativo que o dia terminava, além do apagar dos olhos, era primeiramente da ausência dos raios de sol que passavam pelas frestas da janela e os poucos ruídos dos carros na rua. Ela se perguntava “para que tempo, se só tenho a mim mesma? Tempo é para quem tem algo a oferecer ou para quem tem alguma coisa pendente”. Foi durante esses e tantos outros pensamentos que começou a perceber que algo acontecia dentro dela. Algo além dos apertos no peito e os esforços para engolir a saliva ácida. Havia vida dentro dela. Só não existia como se mexia. “Um filho?”, ela se perguntava. Não era. Talvez fosse convidativo um motivo extra, mesmo que interno, para ela desistir dessa fuga, porém, era o próprio organismo dando sinais de fraqueza, talvez alertando para o pior.

E era o melhor que o pior poderia oferecer. Não era fome, nem sede, nem dor física alguma; era desejo de vida. Ela não notava, mas aos poucos ela começou a abrir um pouco as persianas, os olhos miravam não somente para o teto enquanto deitada. A vida pedia algo e ela não sabia bem o que era e nem se ela tinha algo a oferecer, mas parecia que algo estava acontecendo, não do lado de fora onde tudo e todos já haviam esquecido ela, mas agora era real. Alguma coisa além da defesa deveria ser real.

Aos poucos a janela foi-se abrindo, em contraponto, eram rápidos os passos pela sala. Parecia um treino de como andar pela rua novamente. Parecia que dessa vez algo estava por acontecer. Ela nem sabia o que era. Medrosamente estava disposta e receber, depois de tanto tempo, aquilo que a vida tinha a oferecer.

O vizinho estava passando pela rua na primeira vez que ela se aventurou pelo próprio pátio. De relance a percebe como sendo algo estranho naquele espaço florido. Ela carregava um ar escuro e denso, mesmo ao lado de tantas cores bonitas. Assim acontece uma foto mental, com legenda “passarei a olhar o que aquele ao lado tem a me oferecer”. Dessa vez o estampido não foi de um tiro suicida de algum pesadelo, agora era uma respirada certeira e única depois de ter atravessado uma piscina inteira.

A conta de luz já não era paga há oito meses, portanto, agora o dia era aproveitado ao máximo. Uma minhoca embaixo de um vaso de flor era alegria certa, um Pardal nunca visto anteriormente era nutriente não só para os filhotes, “a terra tudo podia dar, mas nela é preciso plantar”, foi um dos pensamentos.

Ela, em um desses dias, abre a caixa de correspondências e vê em meio as pilhas de cobranças e panfletos, uma carta endereçada a ela. O remetente estava em branco. Dentro havia uma folha de jornal com um recorte que dizia “Hoje começa a Primavera, a estação das flores”. Ela não creu na nova estação, tal como não acreditava nela mesma, mas bateu como um aperto no peito aquela simples frase. Algo precisava ser feito. E assim se fez.

O dia seguinte foi reservado a uma caminhada pelo bairro, uma visita a padaria e um tropeço na calçada. Assim era feita a vida daquela que acabou por se enclausurar dentro da própria casa, mas que estava presa dentro dela mesma. A trincheira era forte, relutante e até prazerosa em infinitos momentos. Não foi o suficiente para tirar o que de mais valioso aquela menina grande tinha: querer ser. Querer ser alguém que não ela mesma. Querer ser mais. Querer, além de ser ela mesma, ir além das limitações que o mundo impunha. Mal ela sabia que não eram os pensamentos e os tiros das pessoas que impunham a defesa; era ela que se deixava ser atingida para só depois de algum tempo começar a juntar forças para se recompor. Assim ainda continuou acontecendo, por um tempo curto. Ela tinha algo a oferecer e resolveu que desta maneira pudesse ser alguém, mas ser alguém viva.

Mariana encorajou-se e agora mora na cidade vizinha. Conseguiu um emprego em uma floricultura, agora se dedica a pintura e, recentemente, começou a estudar canto. Não o canto, mas a quadra inteira.

Um comentário:

Arlise disse...

"Ana e o mar... Mariana... Histórias que nos contam na cama. Antes da gente dormir."