07 dezembro, 2010

A Professora

Conversando ontem pela manhã com uma professora - que também é diretora -, em um colégio renomado da rede pública do estado do Rio Grande do Sul, me deparo com o retrato da dor, da confusão e do vício da educação. Fui até o colégio no intuito de procurar um lugar para trabalhar meus pensamentos e colocar em prática tudo que aprendi na psicologia, filosofia e na própria pele quando ainda era estudante colegial. Servir é dos sentidos da minha vida e pelo qual vivo. Então vamos lá.

Com muita certeza me deparei com uma professora que um dia sonhou em dar aula para crianças, ensiná-las e ganhar sua vida com isso; se constitui assim um bom exemplo de pessoa que tem um sentido baseado em valores do ensinar, instruir, e no ajudar o florescimento de um cidadão digno. Existem os valores, mas existe algo além disso: A remuneração (dinheiro), o ambiente de trabalho (estrutura física, recursos, relações entre colegas e alunos), relação com o Estado (sentimentos e políticas com relação ao seu “chefe” mantenedor das suas necessidades), sua visão sobre o seu papel na sociedade e senso de responsabilidade frente as dificuldades que o país enfrenta; dentre outras questões que abordarei em outra oportunidade. Como o professor vive essas questões que abordei acima? Como ele analisa? Que atitudes ele toma?

Uma funcionária, com certa idade, trajando um vestido leve e calçando um de nossos chinelos populares, atendeu-me prontamente - se não fosse pela fachada bonita e pelo prédio imponente, jurei que me serviriam um café e um chimarrão -; a funcionária parecia estar em casa, não em um colégio. Fui esquecido por alguns momentos em um corredor, o que me possibilitou observar o ambiente e as pessoas sem que minha observação interferisse no que acontecia e em como se portavam. Esperei por alguns momentos. Tentei descobrir, através dos trejeitos, qual daquelas mulheres era a diretora com quem eu falaria. Tendo em vista o desleixo, pensei que qualquer uma daquelas senhoras poderia ser a diretora, mas enganei-me: A que menos aparentava estar à vontade, com um ar de preocupação, aproximou-se de mim e perguntou meu nome. Respondi e expliquei as minhas intenções. Indagou sobre o que poderia um profissional da psicologia fazer no colégio. A dúvida que estava em looping no pensamento dela era se eu queria dar aulas de psicologia, seguida de “mas tu achas que dá pra trabalhar com o ensino médio? Tu podes fazer com o ensino técnico”. Expliquei que posso trabalhar o âmbito institucional; as metodologias de ensino; as relações de pais <-> professores, aluno <-> professor, professores <-> professores, colégio <-> sociedade; fazer grupos de alunos, professores, pais; dar palestras sobre assuntos de interesse deles ligados a psicologia. Abri um leque que foi além do que acabo de falar. Fui interrompido com olhos piscando rapidamente, cabeças balançando de um lado para outro, e um rosto de desaprovação. “Tu não vais conseguir fazer isso. Acho que tu deves focar mais em alguma coisa, fazer algo pontual, nos entregar (um projeto) que daí a gente vê se aprova ou não”. Logo pensei em como seria um jogador de futebol sem uma perna ou um lutador de boxe tendo um cotoco ao invés de um braço; seria eu um psicólogo escolar que esquece a imensidão de fatores que constitui um colégio, um “capenga”.

Logo se aproximou uma moça no momento em que falei sobre minha vontade de fazer um trabalho quanto a instigar o pensamento político nos jovens. Cabeça, olhos e corpo ficaram inertes e atenciosos. Creio ter atingido o que mais incomoda e o que mais estimula aquela professora. Começou a relatar o descaso dos alunos com relação à política, a pouca importância que tem a política na vida dos jovens, citou exemplos de colegas professores que afirmaram ter votado na atual governadora Yeda Crusius... Nesse momento esperei um surto psicótico ou uma crise conversiva. Vi muita raiva e indignação com os que parecem ser seus adversários. “E tu, votou na Yeda?”, respondi que sim, mesmo sabendo que viria o discurso viciado, enjoado e cheio de bordões, típicos de sindicalista mais preocupado com o caminhão de som à sua disposição e ao alarde na praça pública do que a conversar com calma, serenidade e maturidade. “Vocês sabem o que ela (governadora) fez?”, continuando, “Tentou acabar com o nosso plano de carreira, não aumentou nosso salário e ainda tentou aprovar a meritocracia!”. Ouvi pacientemente e assentindo com a cabeça.

Como vimos, durante o processo do último e penúltimo ano, o governo tentou, sim, aumentar os salários dos professores do Rio Grande do Sul. Propôs um aumento que poderia ser de até 60% sobre o salário atual de R$950, a implementação de uma espécie de 14º salário correspondente a gratificação pelo cumprimento de metas, reestruturação do plano de carreira e gratificações por qualificação que o servidor tiver feito. O Sindicato da categoria alega não receber informações quanto às mudanças. Mesmo que isso fosse verdade, por não haver comunicação entre o governo e sindicato, existe mais de 6 jornais de grande circulação, 10 rádios que noticiam assuntos políticos, portais na internet e outros tantos meios da informação do governo chegar aos professores e, principalmente, ao sindicato.

De um lado o Estado rígido, abalado, com dificuldades financeiras e saindo de grandes períodos de gestões péssimas - que, inclusive, não pagavam esse salário mínguo em dia - de outro, professores cansados, esquecidos pelos mesmos partidos, esfomeados pelo poder, que dominam o seu próprio sindicato, e tendo de ensinar, formar cidadãos e passar dificuldades no seu sustento. Após tanto desabafo, expressei a ela que o professor deveria ganhar mais que um médico: “O médico salva vidas, cura doenças, mas é o professor que ajuda a florescer as plantas e tem a responsabilidade de instigar a mudança dentro das pessoas que eles ensinam”. De um tsunami passamos a um balanço da praça. Após ver que a senhora se acalmou, falei sobre o artigo que escrevi há pouco tempo sobre o modelo de Estado que o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau propôs, a comparação que faço com o quadro atual, e o “instrumental” dado por autores da psicologia, pedagogia, filosofia trazidos por Carl Rogers e Viktor Frankl, mostrando querer aplicar diariamente no trabalho junto ao colégio. Vi interesse nos seus olhos. Me convidou para vir durante a tarde, pois o professor de filosofia poderia se interessar pelo meu trabalho.

Vi um piso com buracos, mesas riscadas, computadores antigos, teias de aranha em luminárias queimadas, alunos falando alto com a displicência de adolescente, mas obviamente o que mais me impactou foi a professora tão amargurada e soterrada sob suas próprias dores. Que atitudes essa professora e tantos outros tem em sala de aula? Que visão tem dos alunos? Que espécie de ambiente eles proporcionam aos alunos trazendo essa dor e essa indignação, muitas vezes deturpada e carregada de preconceitos? Será que ela mesma não está no olho do furacão, no lugar mais apropriado a mudança, sendo ela a mais responsável por instigar e possibilitar novos rumos ao Estado que ela tanto reclama, e com razão? Trará algo de novo um estagiário de psicologia? Conseguirá adentrar corações amargurados?

Creio ao menos tentar instigar perguntas no único lugar de onde provêm as mudanças: No íntimo das pessoas. Alcançar o espírito das instituições constituídas por pessoas dignas de respeito, mesmo que muitas vezes mostrando suas feridas e propondo curativos. Mesmo que eu não trabalhe nesse colégio, espero ter plantado alguma coisa na conversa.

Ah! Pela tarde fui ao colégio e conversei com o professor Davi. Estou para dizer que a conversa foi bem diferente da manhã. Sempre acabo os textos e os meus dias com alguma esperança.

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