22 abril, 2011

O Pequeno Déspota e a Educação Através das Coisas


Relato verídico retirado de "Emílio" ou "Da Educação" de Jean-Jacques Rousseau. Nessa breve história Rousseau conta como os pais deixam que os vícios se alojem, cresçam e tomem conta do pequeno infante. Rousseau, no papel de preceptor/professor, tem uma atitude diferente da habitual para a época (meados de 1700) e, com certa segurança arriscando, para os atuais métodos de educação baseados no entregar o conhecimento ao invés de instigá-lo. Baseamos a educação em transporte de informações, na maior parte das vezes, áridas, lineares e dotadas de única visão sobre determinado assunto. Rousseau defende que a educação seja o mais próximo das coisas, na dependência delas e não dos vícios que nós enquanto pais e educadores criamos. Que somente o necessário seja buscado para que o supérfluo não passe a ser desejado. Há trezentos anos atrás Rousseau já falava sobre o tal consumismo.

"Durante algumas semanas, eu me encarregara de um menino acostumado não apenas a fazer suas vontades, como também a fazer com que elas fossem feitas por todos e, por conseguinte, estava cheio de fantasias. Desde o primeiro dia, para por à prova minha complacência, quis levantar-se à meia-noite. No mais profundo do meu sono, dele salta da cama, pega sua camisola e me chama. Levanto-me, acendo a vela; ele não queria outra coisa; ao cabo de quinze minutos, ele é vencido pelo sono e volta a se deitar, contente com seu resultado.

Dois dias depois, ele o faz de novo com o mesmo êxito, e de minha parte sem o menor sinal de impaciência. Enquanto ele me beijava ao tornar a se deitar, eu lhe disse tranquilamente: Meu amiguinho, tudo muito bem, mas não volte a fazer isso. Essa palavras excitaram a sua curiosidade e, a partir do dia seguinte, querendo ver de que maneira eu ousaria desobedecer-lhe, não deixou de se levantar à mesma hora e me chamar. Perguntei-lhe o que queria. Respondeu-me que não conseguia dormir. Tanto pior, respondi, e fiquei quieto. Pediu-me para acender a vela. Para quê?, e fiquei parado. Esse tom lacônico começava a embaraçá-lo. Tateando, foi procurar o isqueiro, que ameaçou acender, e eu não pude deixar de rir ao ouvi-lo tentar acendê-lo com os dedos. Finalmente, convencido de que não teria sucesso, ele trouxe o isqueiro até minha cama; eu lhe disse que não tinha nada para fazer com aquilo e virei para o outro lado. Então, ele se pôs a correr pelo quarto, gritando, cantando, fazendo muito barulho, dando na mesa e nas cadeiras esbarrões que tinha grande cuidado de moderar, e com que não deixava de gritar bem forte, na esperança de me perturbar. Tudo isso foi em vão, e percebi que, contando com belas exortações ou com cólera, ele não se preparara de modo algum para esse sangue frio.

No entanto, decidido a vencer minha paciência pela teimosia, ele continuou a algazarra com tal sucesso, que finalmente eu me enraiveci e, pressentindo que iria estragar tudo com um arroubo fora de propósito, resolvo agir de outra maneira. Levantei-me sem dizer nada, fui até o isqueiro, que não achei; peço-o, ele mo dá, radiante por finalmente me ter derrotado. Acendo o isqueiro e a vela, pego a mão do meu garotinho e o velo tranquilamente para um recinto vizinho cujas venezianas estavam fechadas e onde nada havia que pudesse ser quebrado; deixo-o ali sem luz; depois, fechando a porta à chave, volto a me deitar sem lhe dizer uma palavra. Não é preciso perguntar se no começo houve barulho, que eu esperava: não me abalei. Finalmente o barulho cessa; escuto, ouço-o ajeitar-se e me tranqüilizo. No dia seguinte, entrou cedo no recinto e encontro meu pequeno rebelde deitado uma cama, dormindo um sono profundo, do qual, depois de tanto cansaço, devia estar precisando muito.

O caso não terminou aí. A mãe soube que o filho passara dois terços da noite fora da cama. Logo, estava tudo perdido, era como se a criança tivesse morrido. Percebendo que a oportunidade era boa para se vingar, o menino se fingiu de doente, sem prever que não ganharia nada com isso. Chamaram o médico. Infelizmente para a mãe, o médico era um brincalhão, que, para se divertir com seus pavores, aplicava-se em aumentá-los. Todavia, ele me disse ao ouvido: deixe comigo, prometo que a criança ficará curada por algum tempo da fantasia de estar doente. Com efeito, prescreveu dieta e repouso, e recomendou o menino ao boticário. Suspirei ao ver aquela pobre mãe assim enganada por todos os que cercavam, exceto por mim, que ela passou a odiar, justamente porque não a enganava.

Depois de reprimendas duríssimas, disse-me que seu filho era o único herdeiro da família e era preciso conservá-lo o que custasse, e que não queria que ele fosse contrariado. Nisso eu estava de acordo com ela, mas ela entendia por contrariar não obedecê-lo em tudo. Percebi que devia assumir com a mãe o mesmo tom que com a criança. Senhora, disse-lhe eu com bastante frieza, não sei como se educa um herdeiro e, o que é mais, não quero aprendê-lo; podeis arranjar-vos a esse respeito. Precisavam de mim por mais algum tempo, o pai serenou tudo; a mãe escreveu ao preceptor para que apressasse o retorno; e a criança, vendo que não ganhava nada perturbando meu sono, nem estando doente, resolveu enfim dormir e gozar da saúde.

Não é possível imaginar a quantos caprichos semelhantes o pequeno tirano havia sujeitado seu infeliz preceptor, pois a educação se fazia diante da mãe, que não tolerava que o herdeiro fosse desobedecido em nada. A qualquer hora que ele quisesse sair, era preciso estar pronto para levá-lo, ou melhor, para segui-lo e ele tomava todas as precauções para escolher o momento em que o preceptor estivesse mais ocupado. Ele quis exercer sobre mim o mesmo domínio, e vingar-se de dia do repouso que era obrigado a me conceder à noite. Prestei-me de boa vontade a tudo e comecei por constatar diante dele o prazer que eu sentia em lhe agradar; depois disso, quando se tratou de curá-lo de sua fantasia, agi de modo diferente.

Primeiro foi preciso fazer com que ele errasse, e isso não foi difícil. Sabendo que as crianças só pensam no presente, assumi sobre ele a fácil vantagem da previdência; tive o cuidado de lhe proporcionar em casa uma diversão que eu sabia que ele adorava e, no momento em que o vi mais entretido, fui propor-lhe um passeio; mandou-me embora; eu insisti, ele não me ouviu; tive que me render, e ele anotou preciosamente em si mesmo esse sinal de sujeição.

No dia seguinte, foi a minha vez. Ele se aborreceu, como eu planejara; eu, pelo contrário, parecia profundamente ocupado. Não era preciso tanto para decidi-lo. Ele não deixou de vir me tirar do trabalho para levá-lo para passear o quanto antes. Eu recusei, ele teimou. Não, disse-lhe eu, fazendo a tua vontade, ensinaste-me a fazer a minha; não posso sair. Pois bem, respondeu ele vivamente, sairei sozinho. Como quiser. E retomei meu trabalho.

Ele se veste, um tanto inquieto por ver que eu o deixava agir e não o imitava. Pronto para sair, vem despedir-se; despeço-me ele se esforça por me alarmar com o relato dos passeios que vai dar; ouvindo-o, acreditar-se-ia que fosse até o final do mundo. Sem me perturbar, desejo-lhe boa viagem. Seu embaraço duplica. Contudo, conserva a compostura e, pronto para sair, diz a seu lacaio que o siga. O lacaio, já prevenido, responde que está sem tempo e, ocupado com minhas ordens, deve obedecer mais a mim do que a ele. Por essa o menino não esperava. Como conceber que o deixem sair sozinho, ele que acredita ser a pessoa mais importante de todas, e acha que o céu e a terra estão interessados em sua conservação? Porém, ele começa a sentir sua fraqueza; compreende que vai achar-se sozinho no meio de pessoas que não o conhecem; vê de antemão os riscos que vai correr; apenas a teimosia o sustenta ainda; desce as escadas lentamente e muito desconcertado. Finalmente, chega à rua, consolando-se um pouco do mal que lhe pode acontecer com a esperança de que me responsabilizarão por ele.

Era ali que eu o aguardava. Tudo estava preparado antecipadamente e, como se tratava de uma espécie de cena pública, eu obtivera o consentimento do pai. Mal havia dado alguns passos e ele começou a ouvir conversas a seu respeito. Vizinho, olhe o senhorzinho! Onde será que ele vai sozinho? Vai se perder; vou pedir para que entre em nossa casa. Vizinha, não faça isso. Não está vendo que é um pequeno libertino que expulsaram da casa de seu pai porque não queria fazer nada? Não devemos recolher os libertinos; deixe que vá para onde quiser. Muito bem, então! Que Deus o guie! Não gostaria que lhe acontecesse algum mal. Um pouco mais adiante, ele encontra alguns moleques mais ou menos de sua idade, que mexem com ele e zombam dele. Quanto mais avançava, mais embaraços encontra. Sozinho e sem proteção, vê-se joguete de todos e nota com muita surpresa que sua agulheta e sua roupa dourada já não lhe trazem tanto respeito.

No entanto, um de meus amigos, que ele não conhecia e que eu havia encarregado de protegê-lo, seguia-o passo a passo sem que ele se desse conta, e aproximou-se quando chegou a hora. Esse papel, que se parecia com o de Sbrigani em Pourceaugnac1, requeria um homem de espírito, e foi perfeitamente preenchido. Sem intimidar e amedrontar a criança impressionando-a com um terror muito grande, fê-la sentir tão bem a imprudência de sua temeridade que ao cabo de meia hora trouxe-a de volta a mim, dócil, confusa e sem coragem de erguer os olhos.

Para terminar o desastre de sua expedição, exatamente no momento em que o menino voltava seu pai descia para sair, e o encontrou na escada. Teve de dizer de onde vinha e por que eu não estava com ele*. O pobre menino preferiria estar a cem pés por baixo da terra. Sem se divertir fazendo-lhe uma longa reprimenda, o pai lhe disse num tom mais seco do que eu teria esperado: Quando quiseres sair sozinho, és tu que decides. Mas, como não quero ter um bandido em casa, quando isso acontecer, cuida de não voltar mais.

De minha parte, recebi-o sem reprimendas e sem zombarias, mas com um pouco de gravidade; e, temendo que ele suspeitasse que tudo o que se passara não fora nada mais do que uma brincadeira, não quis levá-lo para passear no mesmo dia. No dia seguinte, vi com grande prazer que ele, triunfante, passava comigo diante das mesmas pessoas que haviam zombado dele no dia anterior por tê-lo encontrado sozinho. É claro que ele não mais me ameaçou de sair sem mim.

É por esse e outros meios semelhantes que, durante o pouco tempo que estive com ele, consegui fazer com que fizesse tudo que eu queria, sem lhe ordenar nada, sem lhe proibir nada, sem sermões, sem exortações, sem aborrecê-lo com aulas inúteis. Assim, enquanto eu falava, ele ficava contente; ele compreendia que algo não ia bem, e sempre a lição vinha-lhe da própria coisa."

1. Peça de Molière

Em tal caso, podemos sem perigo exigir a verdade de uma criança, pois ela sabe então que não seria capaz de disfarçá-la e que, se ousasse dize ruma mentira, seria imediatamente descoberta.

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