19 abril, 2011

Pastor do Tempo

Dooggie-Dog era um Rough Collie que vivia em um canil de cães pastores. Com ele foram deixados seus irmãos Raul, Bandit e Rufus, mas logo foi de mudança para a fazenda Lombas onde os donos necessitavam de um cachorro pastor que ajudasse o capataz a recolher as ovelhas e as rezes à tardinha. A tarefa seria fácil para ele, se não tivesse apenas três meses e somente pêlos escondendo seu esqueleto tísico. Diariamente Dilon levava-o para o campo e deixava o jovem solto entre as ovelhas. Apesar da liberdade, sempre mantinha sob o olhar porque, como dizem: “cachorro que sente o sangue da ovelha, só matando”. Mas Doogie se mostrou esperto, ágil, mantendo os seus latidos e pulos espalhafatosos, típicos de meninos novos.

Pela manhã estava o seu café servido: arroz, sobras de carne e água limpa. – Vamos, rapaz – chamava Dilon dando-lhe tapas nas orelhas e batendo no peito. Era tudo brincadeira e diversão para o jovem Doogie-Dog. A diversão acabou quando uma ovelha desgarrada foi vista dentro do lago com dois graxains na beira prestes a pular. De longe ele ouvira os grunhidos e logo começou a latir e uivar como louco fora da casa. O experiente funcionário de pronto montou no tordilho seguindo o collie, dando tiros com a calibre 12. Dooggie atirou-se no lago desesperadamente e pensando consigo: “preciso salvar essa lanuda! Mas por que diabos essa imbecil foi se meter aqui! E esse frio! Brrrrrr... maldita!”.

- Filha duma égua! Deveria ter morrido, essa desgraçada! Olha, não sei o que é mais burro: ovelha ou galinha. – reclamou para si mesmo o Dilon Campos. – E tu, hoje vai ganhar bóia boa no almoço. Galinha fresca e arroz branquinho, não aquele da agropecuária! – entre gotas de cachorro-molhado, o companheiro lhe ofereceu carinho e orgulho pelo trabalho bem feito. Voltaram para casa a trote.

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Tempos além, após terem negociado a fazenda e adquirido novas terras mais próximas da cidade, Dooggie estava conhecendo o novo território, agora com o peso de sete anos de idade; o que para um cachorro do campo significa quase aposentadoria. Os bigodes e sobrancelhas estavam branqueando aos poucos. “É, talvez agora eu tenha um pouco de descanso por aqui”, refletiu o velho cão, “esse guri não me parece dar muito trabalho para cuidar”. O pequeno Miguel era o filho menor da família. Loirinho, branquinho e rechonchudo do dedão do pé até a testa - enrugada de tanto sorrir. Os dois não se desgrudavam um minuto. Viviam entre corridinhas e carinhos – pareciam dois irmãos.

Próximo da sede, eucaliptos cidró dançavam a valsa do vento. No inverno venta muito na Fazenda Santo Onofre, o frio é úmido e cortante. Os lenhadores trabalham 14 horas por dia para dar conta das lareiras, fogões e carretas que levam as toras para a fábrica de papel.

O velhote saiu a trotezito naquela tarde típica de verão gaúcho, quando o sol se esconde entre os sabiás que ciscam os últimos instantes do dia e o minuano se atreve a beijar as nucas. Sempre tivera curiosidade em saber de onde vinham aqueles ruídos quase contínuos que precediam os estouros e estilhaços de galhos. Os lenhadores não davam trégua; as moto-serras só paravam no horário de almoço, café e no final da empreitada diária, quando tinham suas correntes afiadas, reguladas e o óleo trocado. Dooggie se espantava com aquilo tudo, com as suas árvores desaparecendo aos poucos lá na vista da sede, os estrondos próximos, os tatus desistindo de suas tocas e os passarinhos ausentes, mesmo após o findar do dia. Envelhecer estava sendo pesado e triste para o pastor.

Miguel saiu cedo para o pátio repleto de gramíneas cheias de orvalho congelado à busca do companheiro. Recém tomara a caneca de leite com canela e o pão quentinho com doce de leite feito pela dona Marli. “Dooggie! Dooggie!” – exclamava o pobre alemãozinho. O canil estava solitário. As galinhas estavam estáticas e tilintando de frio nos poleiros. As ovelhas estavam abraçadas dentro do galpão esquentando uma a outra com suas lãs.

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Duas lágrimas escorreram pelo rosto liso e alvo do pequeno menino. Talvez nunca mais brincassem novamente, correndo e tropeçando nas próprias pernas, mas certamente cresceria o tempo nas suas costas e os segundos que ainda estava por vir.

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